Colocar as ideias no papel antes de levá-las ao prato faz parte do processo criativo de muitos chefs de cozinha. Além de receitas, lembretes sobre processos e notas sobre potenciais ingredientes, seus cadernos – ou tablets, no caso dos mais tecnológicos – guardam também desenhos que dão pistas de como será o empratamento. Tem desenho que mais parece um rabisco, tem desenho que é obra de arte – com direito à exposição em galeria e valor de venda superior a US$ 3 mil.
“Meus desenhos são mais um esboço, cheio de flechas e anotações, tudo bem rabiscado. Se bobear, nem eu entendo depois de um tempo”, conta o chef Luiz Filipe Souza, do Evvai. A caneta do chef entra em cena mais para o final da criação, quando as ideias estão mais maduras. “Desenho para pensar nos detalhes.”
Com a pandemia e as novas regras de etiqueta do salão, Luiz Filipe tratou de aprimorar seus traços para ilustrar – e explicar – aos clientes as etapas do seu menu-degustação. “Não dava mais para a equipe de sala ficar explicando prato por prato à mesa, contando a história por trás de cada receita. Além da necessidade de distanciamento, é muito difícil se fazer ouvir usando máscara e face shield”, explica. Desde a reabertura, quem opta pelo menu Oriundi recebe uma caixa de madeira à mesa recheada de cartinhas numeradas, que correspondem à ordem das etapas. Além das ilustrações e legendas, elas trazem histórias escritas à mão.
Solução que deve continuar mesmo com o fim da pandemia: “Nem sempre a pessoa quer ficar ouvindo a explicação de prato – e, na verdade, nem precisa, cada prato se resolve por si só, com ou sem storytelling. As cartas ficam na mesa, e o cliente lê se quiser, quando quiser, e não tem mais a sua conversa interrompida a cada serviço”, conta o chef.
Quem também colocou seus dotes artísticos para jogo na quarentena foi a confeiteira Nathalia Gonçalves, do Charco, que passou a ilustrar a montagem das sobremesas do delivery para que os clientes tentassem reproduzir em casa. “A gente mandava os componentes do prato separados, juntamente com o passo a passo. Teve muita gente que fez, postou e marcou o perfil do restaurante nas redes”, conta.
Nathalia sempre gostou de desenhar – chegou, inclusive, a cursar Artes Visuais por um ano. Desde que virou confeiteira, ela põe no papel todas as suas criações. “Parto dos ingredientes que quero usar, das técnicas, e os desenhos vão me ajudando a visualizar melhor a sobremesa, as proporções, os formatos de cada componente, além de me dar um norte para o empratamento. Às vezes, na prática, muda tudo, mas funciona como uma base.” Em sua casa, há desenhos em todo canto. “São esboços, vou pensando e colocando no papel, sem a menor preocupação estética. Nem para o Tuca (seu marido, e chef do restaurante) eu gosto de mostrar”, ri.
Thiago Bañares, do Tan Tan, também bandeou para a gastronomia em vez de seguir carreira como desenhista – ele chegou a prestar vestibular para Desenho Industrial e passou, mas optou pela dança das panelas. Sua aptidão para os desenhos é aproveitada durante o processo criativo de pratos que planeja servir.
“Na hora de desenvolver uma receita, é preciso pensar no sabor, na textura e na aparência do prato, que é tão importante quanto”, afirma Thiago. Além do estímulo visual quando a comida é servida à mesa – come-se primeiro com os olhos, afinal –, “o design do prato é a assinatura do cozinheiro”, acredita. “Desenhar antes de preparar a receita e empratar me ajuda a pensar se não falta algo ali, se preciso aumentar a quantidade de proteína ou de carboidrato.”
Já a chef Telma Shiraishi, do Aizomê, trocou os croquis de quando trabalhava com moda pelas ilustrações dos pratos que vai servir no restaurante. “Desenho quando não tenho à mão algum ingrediente ou cerâmica que pretendo usar na composição. Quando necessário, faço esboços para a equipe entender o que imagino numa montagem."
Na concepção da sobremesa jardim de musgos, novidade no menu do restaurante, Telma primeiro pensou no empratamento em um prato côncavo, como consta no desenho, mas acabou mudando a cerâmica "disco voador" no final. "A colher também veio depois, que dá todo o charme do serviço", complementa a chef. O prato combina chocolate, matchá, cogumelos enoki, nozes caramelizadas e pimenta sanshô. "Fazia tempo que eu queria incorporar incorporar cogumelos em uma sobremesa."
Seguindo o ditado italiano “gil occhi anche hanno la tua parte”, que em português quer dizer “os olhos têm a sua parte na comida”, o chef Fellipe Zanuto, há anos, têm o hábito de fazer desenhos para pensar na montagem das redondas d'A Pizza da Mooca, já que “a ordem e a disposição dos ingredientes na cobertura fazem toda a diferença”, conta.
Com os pratos da Hospedaria, faz o mesmo: ilustra com detalhes cada componente e a disposição deles no prato. “Assim, na hora de empratar, você já está com as ideias mais organizadas, concretas, o que diminui o risco de ficar ruim e ter que preparar tudo de novo”, explica.
Desenhar para não esquecer
“Uma vez, esqueci de colocar uma ervinha no prato e tomei a maior bronca do chef”, relembra Helena Rizzo. Foi aí, durante a temporada em cozinhas fora do Brasil, no início da carreira, que ela passou a desenhar todos os pratos, como forma de fixar os ingredientes e a montagem na memória.
“Faço isso até hoje no Maní (seu restaurante), meus cadernos são apinhados de anotações e desenhos. Outro dia achei um caderninho com ideias para o menu de estreia da casa. Gosto de folhear esses registros antigos de vez em quando, para relembrar e ter novas ideias.”
No Japão, Itsuo Kobayashi, ex-chef de cozinha, por mais de 30 anos, fez desenhos fiéis de suas refeições, com uma riqueza de detalhes que, segundo ele, são capazes de fazê-lo lembrar do sabor e da textura dos pratos. São centenas de tigelas de lámen, bentôs (marmitas japonesas), oniguiris, tempurás, pratos de karê, tonkatsu – as ilustrações, supercoloridas, aparecem acompanhadas de informações como o nome do prato, do restaurante, o valor, além da opinião de Kobayashi sobre a experiência.
O acervo com mais de mil imagens caiu nas graças de Nobumasa Kushino, curador da galeria Kushino Terrace, em Fukuyama, que montou uma exibição permanente com as obras de Kobayashi – algumas à venda por até US$ 3 mil.