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Comida

Comida contra o racismo

A chef Aline Chermoula, autora do livro Cozinheirinhos da diáspora - Sabores e saberes da nossa cozinha ancestral afetiva fala da importância de reconhecer a ancestralidade na comida do dia-a-dia

Aline Chermoula, 36, dedica-se à cozinha diaspórica africana nas Américas. Foto: Felipe Rau/EstadãoFoto: Felipe Rau/Estadão

“Se não usarmos a educação como ferramenta não vamos derrotar a guerra contra o racismo”. É o que acredita a chef Aline Chermoula, autora do livro Cozinheirinhos da diáspora - Sabores e saberes da nossa cozinha ancestral afetiva e do guia Vai ter criança na cozinha, recém-lançado na FLIP. Nesta entrevista para o Paladar, Aline reconhece que a cozinha é, sim, lugar de ampliar conhecimentos e de lutar contra o preconceito. Aposta nas crianças como público-alvo de suas palestras e oficinas de culinária e fala sobre a importância do dia 20 de novembro. Um dia para celebrar as conquistas do povo negro a partir de suas lutas: “O dia 20 chama a atenção para aquilo que nos pertence; para o valor da igualdade, de olhar para a cultura do outro e de nos olharmos com “uno” para nos fortalecer”.

“A comida com afeto e ancestralidade é uma maneira de conectar passado e presente, de honrar os antepassados e de reforçar os laços comunitários e familiares”, você pode comentar essa frase publicada no seu Instagram?

Somos o que somos por conta dos que vieram antes. As pessoas, de modo geral, acham que são formadas apenas pelo acúmulo de suas próprias experiências. Prefiro acreditar que a ancestralidade nos conecta à nossa história. A comida é carregada de afeto em um amplo sentido. E a força que existe no alimento vem também dessa ancestralidade.

Como pesquisadora, professora e escritora focada no tema comida africana, qual é a principal mensagem a ser divulgada no seu trabalho?

Deixo claro que conhecemos pouco sobre a cultura culinária. Temos uma visão muito preconceituosa. A comida de verdade valoriza o alimento em si. A forma como você vai mexer a comida, servir a comida esta carregado de significados e de tradição. A comida pra mim é poesia. O poeta escreve para o outro, assim como cozinhamos para o outro. Meu trabalho fala diretamente com as crianças. Perdi um pouco a esperança de trabalhar com adultos. Me encontrei no universo das crianças, sei lidar com elas, entendo o lugar delas. É leve pra mim. Com adulto, a educação antirracista e muito mais cansativa. Tem adulto que não quer entender. Com criança tem muito mais abertura para tratar de assuntos como a diáspora, por exemplo. Tenho dois filhos, de 8 e 7 anos. Eles foram cruciais para a Chermoulinha (protagonista de seu primeiro livro) existir. Comecei a empreender depois deles, quando passei a experimentar novas formas de pensar e agir. Levo eles para a cozinha com resultados muito positivos.

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O que há de mais importante a ser celebrado no dia 20 de novembro?

As conquistas do povo negro a partir das suas lutas, com certeza. Ainda falta muito espaço e reconhecimento. Temos pessoas negras protagonistas em diversas áreas. Sempre tivemos voz, mas não éramos necessariamente ouvidos. O dia 20 chama a atenção para aquilo que nos pertence. É também o símbolo das nossas conquistas. Enquanto humanidade a gente conquista no avanço, no valor da igualdade, olhar para a cultura do outro. Mostrar nossa essência humana. Nos olharmos com “uno” para nos fortalecer.

Acha que as crianças de agora terão uma imagem diferente sobre ancestralidade do que as crianças da sua geração? O que há de melhor e pior nesse cenário?

Com certeza as crianças de agora terão um olhar diferente, mais aprofundado sobre a cultura geral e a cultura alimentar. O lado positivo é a integração de pessoas e alimentos sem distinção entre a comida do pobre e a comida do rico. Acho que essa lacuna vai estreitando cada vez mais. No entanto, o conteúdo de afrobrasilidade precisa ser expandido. Existe uma lei (Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”) que ainda é pouco cumprida. Estender esse conteúdo por todos os estágios da educação é fundamental. Estamos falando de formas de linguagem, de musicalidade, de comida. Dá para resgatar a tradição de maneira mais orgânica, através das brincadeiras coletivas, por exemplo, para perpetuar e não precisar restringir esse conteúdo a uma disciplina nas escolas. Talvez em outro momento nem precisaremos de uma lei para isso acontecer de fato.

Em quais frentes você atua no momento?

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A principal frente são os eventos do meu bufê com cardápio afrocentrado. Depois vêm as oficinas de culinária afrodiaspórica, em que desvendamos que várias comidas do dia-a-dia têm origem no continente africano. Em terceiro lugar estão os livros. Vou lançar o Cozinheirinhos da Diáspora 2 em 2025, com receitas ancestrais da minha bisavó. Vamos fazer uma união entre ancestralidade e quilombo. Minha bisavó viveu em quilombo e depois foi para a cidade. Quilombo não é uma coisa, são várias coisas. Também faço palestras em escolas e formação para merendeiras. O lugar da fama não é o lugar que eu almejo, quero ver sentido no trabalho que estou fazendo. Se cada um fizer dessa forma, conseguimos unir forças para transformar.

Como funciona o seu processo criativo na hora de criar receitas como o brigadeiro e o brownie de dendê?

Entendo que faço um estudo sobre os alimentos antes de partir para a experiência pratica. É um processo intuitivo. Levei uma vida muito desassociada da ancestralidade. Quando engravidei, comecei a olhar para ela e a ter percepções. Trabalhar com ancestralidade é gratificante pra mim. Quando olho pra mim, vejo que o quiabo e o azeite de dendê tem uma representatividade muito profunda para mim. O dendê está na roupa que manchou, nas lembranças da Sexta-Feria Santa. Está no caruru ou no frango com quiabo. Essa conexão com o dendê é muito profunda. Comecei a minha pesquisa sobre alimentação pelo dendê, são quase 20 anos de pesquisa. As sobremesas vieram da minha pesquisa. Por volta do ano 1000, em algumas localidades do continente africano, faziam-se doces com dendê. Dendê com tâmara, por exemplo. Ali percebi que podia tirar o dendê da comida quente e fazer experiência em outros lugares, como na confeitaria. E também que é mais fácil eu agradar fazendo um brigadeiro do que uma receita inédita. Testei muitas versões do brigadeiro, a ideal foi quando cheguei na combinação de dendê, leite condensado e gengibre, mais o coco queimado para enrolar o brigadeiro, deu muito certo.

Qual é a carga cultural que acompanha um prato de comida?

A força que a comida tem de resistir ao longo dos séculos, representar a identidade de um povo escravizado, a resistência está ainda no ato de comer aquela comida que traz toda uma simbologia. O meu brownie de dendê nasceu do inconformismo com a publicação de uma receita de brigadeiro de dendê sem credito em uma peça de publicidade. Estou desde os 16 anos dentro da cozinha. Mas só recentemente percebi que quando a pessoa te faz algo que não é bacana com relação ao seu trabalho você vai lá e faz algo ainda mais bacana. Foi assim que nasceu a minha versão de brownie com dendê, chocolate branco e raspas de limão siciliano.

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Qual é a sua história de comida favorita?

Minha comida favorita é a moqueca, qualquer preparo. É uma comida que me leva para um lugar muito especial, que remete aos almoços com a minha família no sertão da Bahia. Também tenho uma história bonita com a jambalaia, outro prato emblemático na minha vida. Conheci meu marido em torno da jambalaia, preparamos esse prato todo Natal. Acarajé é muito simbólico também, porque eu me conectava com a Bahia comendo acarajé quando mudei para São Paulo.

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