Potinhos de cores intensas parecem abrigar tinta, e pincéis ao lado aumentam essa impressão, mas as pastas coloridas de textura volumosa são feitas de chocolate. Com pincéis e pequenas espátulas, a confeiteira Sabrina Hayasaki e o artista visual Raphael Jacques se debruçam sobre pequenos bombons e, brincando com variadas cores, pintam a casca dos doces. Sim, “pintam”. Inspirados no expressionismo, em artistas como Cézanne, os dois criaram a coleção Tintoretta que a confeitaria Sacré Sucre, de Sabrina, lança nesta semana. Parece arte, tema ideia de “coleção” como na moda, mas são 17 bombons, além de cinco bolos e macarons, todos comestíveis. De forte apelo estético, e igualmente saborosos.
Todos os bombons - carro-chefe da confeitaria, que atende apenas eventos - têm a casca (o chamado “shell”) de chocolate, feito em formas variadas e com recheios também diversos. Os sabores, com criações a cargo de Sabrina, incluem as clássicas combinações opera (de café com manteiga) e crème brûlée (de caramelo com baunilha) e outras como maracujá com coco, praliné de amêndoas, três limões (taiti, rosa e siciliano), pesto de manjericão doce, cheesecake, fudge de limão, abacate com abacaxi, e matchá, entre outros.
Os recheios são montados em camadas de acordo com o sabor - nada de musse homogênea. Assim, o bombom de cheesecake mostra, ao ser mordido, sua base de massa amanteigada de farinha de amêndoas separada da pasta de cream cheese e, por fim, o coulis de framboesa. Um trabalho delicado.
Enquanto o sabor é a praia de Sabrina, enfermeira que migrou para a gastronomia e estudou confeitaria na Lenôtre, em Paris, a estética é a de Raphael, artista plástico, performer e maquiador, contratado como diretor de arte da coleção (leia mais sobre os dois abaixo). “Buscamos referências no expressionismo. A gente dava zoom em quadros de Cézanne, por exemplo, e pegava um detalhe da pintura como referência”, conta Raphael.
Depois de prontos os bombons por dentro, é hora de pintá-los por fora. Dentre os 17 docinhos, alguns já vêm coloridos desde a fôrma, mas a graça dessa coleção são aqueles pintados à mão depois. É quando o chocolate branco ganha pigmento comestível numa proporção muito maior que a usada normalmente - pelo menos seis vezes o tanto que o mercado de casamentos usa, por exemplo, para doces de tons pastéis.
“A minha ideia foi trazer a alta gastronomia para o mundo dos eventos. Cada casamento que faço é estudado pela paleta de cores, a partir do projeto da festa com o decorador”, conta Sabrina, que adapta o recheio ao formato do bombom que o cliente quiser.
Depois de criar a coleção com Raphael, Sabrina reproduz os modelos em seu ateliê, que fica em Sorocaba, mas dentro de meses vai ganhar base em São Paulo. Ali, um painel mostra os detalhes de cada doce e quanto tempo cada um leva para ser feito. O quadradinho azul de brownie com Nutella, que tem pintura livre por cima, por exemplo, leva 1 minuto e 30 segundos para ser pintado.
É assim que Sabrina consegue colocar preço nessas miniaturas que parecem obra de arte - a unidade custa de R$ 5,50 a R$ 9 - no mercado de casamentos, docinhos convencionais custam por volta de R$ 3.
“Com esses bombons, comer é um detalhe. Eu trabalho com experiência. Um desses comido num terminal de ônibus ou empilhado numa loja não tem o mesmo valor do que numa festa”, diz Sabrina.
Arte para comer
Raphael Jacques nunca tinha feito um doce na vida quando Sabrina Hayasaki propôs a ele a direção de arte da coleção Tintoretta. Ele teve de olhar para o chocolate como tinta e aceitar que aquela nova textura secava numa velocidade muito maior que a tinta que ele usa em seus quadros e pinturas corporais. Potinhos de chocolate amolecido, para ser misturado com pigmentos próprios para confeitaria, devem ser reaquecidos o tempo todo (de acordo com a temperatura do dia) para voltar a ter maleabilidade.
Ainda assim, tudo é bem diferente da mistura fluida à base de chocolate que confeiteiros usam na coloração com pulverização (feita ainda na fôrma, antes de o bombom ser recheado). Em geral, usa-se Mycryo, da Callebaut, uma manteiga de cacau em pó com a qual Sabrina já trabalhava para suas pulverizações.
Foram testes e mais testes com corantes em pó, manteiga de cacau e chocolate branco até eles encontrarem a textura ideal para fazer a textura de artes plásticas nos bombons. Hoje, o trabalho é reproduzido por Sabrina e sua equipe, entre eles o cozinheiro Fábio Cesarino, que também é grafiteiro e fotógrafo, trazendo a arte no DNA.
Um encontro estético
Quando lançou a Sacré Sucre em setembro do ano passado, com o primeiro casamento que fez, a paulistana Sabrina Hayasaki, de 29 anos, já havia desenvolvido um conceito de bombons que fugiam do convencional, trabalhados em “coleção”. Como a sua Blue Collection, que tem uma paleta de azuis tão celestes quanto profundos, fruto também da admiração de Sabrina pelo trabalho de nomes como a americana Melissa Coppel e o bielorusso Andrey Dubovik.
Pouco depois de sua estreia, por meio de amigos em comum Sabrina conheceu o gaúcho Raphael Jacques, de 22 anos, com quem vem pensando no conceito da coleção Tintoretta desde fevereiro. Raphael, que usa a identidade artística Alma Negrot, traz na bagagem artes visuais em diferentes plataformas, incluindo o próprio corpo. Ficou famoso com maquiagens, figurinos e performances da cultura queer, o que o levou também a fazer direção de arte de campanhas, clipes e revistas e a dar cursos de maquiagem.
“Meu trabalho parte da emergência e do improviso. Vim de uma família muito conservadora, onde até ser ilustrador era um problema”, conta ele, que saiu de casa aos 15 anos, morou em cidades como o Rio, até se mudar para São Paulo no ano passado.
Sua verve artística transgressora combina com a escolha do nome da coleção, Tintoretta. Faz alusão à artista italiana Marietta Tintoretto, que viveu ofuscada pela fama do irmão, o também pintor Tintoretto, no século 16. “Ela era muito mal vista por ser artista. Por ser mulher, foi apagada da história. O nome dela não tem a ver com o expressionismo, mas remete à transgressão, assim como acho que nosso trabalho remete à transgressão na gastronomia, para comida além da funcionalidade”, diz Raphael.