Cidade do México Taco, guacamole, quesadilla. Muita gente acha que a comida mexicana se resume a eles. Longe disso, mas a falta de intimidade de brasileiros com a culinária do México se explica pela falta de imigração massiva – como a de libaneses ou italianos, que aqui espalharam a sua culinária para manterem vivas lembranças da terra natal. E também pela disseminação do tex-mex, a cozinha mexicana americanizada que voou pelo mundo como se fosse “tradicional” e botou cheddar em tudo.
Muito além de tortillas e avocados, o México possui uma imensidão de sabores que incluem cactos, formigas, larvas e uma reunião enciclopédica de pimentas. A cozinha típica está tanto nas casas populares quanto nas estreladas, como Pujol e Quintonil, entre as 10 melhores da América Latina no 50 Best.
Para experimentar aromas e sabores mexicanos, Paladar teve a ajuda da cozinheira atrevida Lourdes Hernández, mexicana que morou no Brasil por 13 anos e voltou ao México em 2014. Ao lado do marido, o artista Felipe Ehrenberg, realizava aqui almoços na sua residência, a Casa dos Cariris, que ficou conhecida como o reduto paulistano da boa comida mexicana.
Fazia pouco mais de cinco graus na manhã do inverno mexicano, em fevereiro, quando o nosso roteiro começou no Mercado de Flores, no bairro Jamaica. A recepção foi uma larga caneca de chocolate quente preparado com água e açúcar na banca Antojitos Oaxaqueños. A bebida queimou o corpo e o espírito – como tudo no México, é impossível sair do país incólume.
No mercado, Lourdes conhece as tendas, cumprimenta os vendedores, aponta os ingredientes, “hum, esse mole com camarão está precioso”, e segue falando de comida com grande paixão e uma fome eterna.
Em uma semana na cidade, muito do que foi visto e provado nos tabuleiros do mercado foi depois saboreado em restaurantes, uma experiência que possibilitou a comparação do México tradicional com o México da alta gastronomia de vanguarda, ambos conectados pelas mesmas raízes – tão antigas quanto os povos maia e azteca.
PIMENTA: O AR QUE O MEXICANO RESPIRA
É mentira que uma pessoa avessa a pimenta não possa comer no México – é só pedir tudo sem “salsa” (o molho picante), mas vai vir tudo sem a graça local. É verdade que tudo arde no país, e há vários níveis de ardência, mas nenhum mexicano se contorce à mesa. Pois eis que o marido de Lourdes, Felipe Ehrenberg, tenta ensinar a repórter (de baixa tolerância a pimenta) a entrar na onda do chile, a curtir a dor, a pensar na picância enquanto a boca fumegar. E aguentar firme.
Horas após a conversa com Felipe, foi realmente dor o que trouxe um prato do Pujol, nono melhor restaurante da América Latina, do chef Enrique Olvera. Era um vinagrete de abalone cru (tipo de molusco bivalve, como a ostra) com pimenta habanero, ainda entre as entradas.
Ao que o garçom disse “coma de uma só vez” a ordem foi atendida. A dor causada pela habanero, que trouxe uma experiência quase alucinógena e deixou a bochecha latejando por toda a noite, foi de longe a mais forte vivida no México – Olvera não faz concessões aos estrangeiros que lotam seu salão.
Pela cidade, rolou picância em todos os preparos, até nos inimagináveis – como o mel com salsão e habanero do MiMu, que faz cócegas na goela; a jícama crua (um tubérculo adocicado) no Mercado de Flores; o sorvete pico de gallo na sorveteria QBE; e o pleonasmo chiles rellenos, que é a própria pimenta inteira recheada e frita, nos Antojitos Oaxaqueños.
Não satisfeitos em colocar pimenta já nos pratos, os mexicanos dispõem vários molhos à frente do cliente. No Chilakillers, por exemplo, você escolhe entre cinco – o vermelho, o verde, o de feijão com chipotle, o mole almendrado (com amêndoas) e o “superpicoso”.
Na taquería El Borrego Viudo, uma das mais tradicionais e frequentada por locais, indicada por Lourdes para bons tacos al pastor, a salsa vermelha leva pimentas chipotle, guajillo e ancho, e a verde, jalapeño.
No mercado, essas e outras dezenas podem ser compradas frescas ou secas. Há ainda chile de água (“Um dos mais especiais, vendido por unidade”, diz Lourdes), pasilla, de árbol, poblano, serrano, manzano...
Onde: Antojitos Oaxaqueños. Mercado de Flores de Jamaica - R. Guillermo Prieto, 45. Chilakillers - Av. Revolución, 23. El Borrego Viudo - Av. Revolución, 241. MiMu - R. Chihuahua, 93 B. Pujol - R. Francisco Petrarca, 254. Sorveteria QBE. R. Adolfo Prieto, 1.350.
UM POVO QUE NASCEU DO MILHO
Milho fresco, seco ou nixtamalizado, cozido, frito, no vapor ou na chapa, e lá vêm esquites, pozoles, chalupas, memelas, gorditas, atoles. Há um universo de receitas a partir do milho – na Tacopedia, a enciclopédia do taco que traz introdução do dinamarquês René Redzepi, um organograma nos ajuda a entender o mundo além das tortillas.
Há milhos branco, amarelo, azul, roxo, preto, vermelho – no país, são cultivadas 59 variedades do vegetal, segundo o órgão do governo que cuida da biodiversidade. Por isso, há tantas tortillas coloridas, ainda que sejam mais comuns o branco e o amarelo. Pelo Mercado de Flores, caldeirões fumegantes guardam um creme picante levemente esverdeado – o chile atole. Toma-se num copo plástico com colher e é claro que queima duas vezes: pela temperatura e pela picância. Por ali, cozinheiras também assam espigas, cujos grãos depois vão parar numa grande assadeira de metal com pimentas e outros ingredientes, vendidos em porções. E cozinham milho para servir os esquites, também no copo – é o nosso milho cozido de carrinho de rua, só que apimentado.
Com a Tacopedia, entende-se que um esquite é feito de milho fresco e uma tortilla, de milho nixtamalizado – a técnica envolve o cozimento da espiga com cal viva, que depois é moída e vira uma massa. No vapor, essa massa vira o tamal; se cozida com água ou leite, é o pozol; se frita, são gorditas; e, na chapa, são tortillas. Com as tortillas são preparados taco, quesadilla, enchilada, totopo, chilaquile… E ainda tem o milho seco, que origina farinha. Haja milho!
ANTES DA ESPANHA
A comida e os costumes da era pré-hispânica, antes de o México ser colonizado, resiste em vários restaurantes. É neles que se encontram escamoles, chapulines, gusanos – não são bem aceitos por qualquer turista, mas deveriam, pois são tratados como iguaria e valem a fama.
Os gusanos de maguey são os vermes que crescem dentro do maguey (agave, tipo de cacto, com o qual é feito o mezcal). No Chon, ele é frito e servido com guacamole. Faz muito crec, é salgadinho e deveria vir em balde ao lado de uma bebida gelada – mas é caro (cerca de R$ 40 uma porção que se come em dois minutos) e ninguém se farta como se deveria. Mais crocante só os chapulines, um tipo de gafanhoto frito que espeta as patinhas na boca, como a casca do camarão, e é viciante como amendoim.
Ali também os escamoles – as ovas de formiga – são servidos com guacamole e tortilla. De cor amarelinha e textura macia, lembra ovo mexido. O sabor é suave e ganha mais pronúncia do modo típico como é preparado – refogado na manteiga com salsinha. Os escamoles também podem ser comidos no El Cardenal, casa entre as preferidas de Lourdes que tem uma tortillera antiga à vista.
Na cafeteria Almanegra, de bons cafés de pequenos lotes, vale a galleta (biscoito) com sal de gusano – triturado, é misturado com sal e pimenta e usado em várias receitas. Entre insetos e miúdos de animais, faz fama também o taco de seso (cérebro), como o bem temperado do El Borrego Viudo, cuja textura macia lembra um pudim.
Ainda tem a maionese de formiga chicatana (espécie de saúva) que Enrique Olvera serve no Pujol, receita para nunca se esquecer na vida – dentro de uma cabaça com palha de milho soltando fumaça, um pequeno milho molinho é mergulhado na maionese que ainda leva café e chile costeño... Garçom, tem mais dessa maravilha?Onde. Almanegra. Av. Universidad, 420A. Chon. R. Regina, 160. El Cardenal. R. Palma, 23.
TERRA DE CACTOS ( Y OUTRAS COSITAS)
No Mercado de Flores, um homem tira folhas de cactos de um saco ao chão. As “folhas” são os nopales, a parte arredondada que brota do tronco da planta. Com uma faca, ele arranca os espinhos e acomoda o nopal na banca – para vender como um legume qualquer. Quando crus, são intragáveis, duros. Depois de cozidos, têm textura nada fibrosa e sabor azedinho. Esse cacto é o primeiro prato do menu-degustação do Quintonil – sexto melhor restaurante da América Latina pelo 50 Best, do chef Jorge Vallejo. Curados com sal e servidos com algas e beterraba, têm acidez potente, lembra um ceviche. Vallejo aproveita essa acidez para servir um sorbet de nopal ao fim dos pratos quentes, antes da sobremesa, para limpar o paladar.
Além de cactos, há outros vegetais típicos pelas bandas de lá, como a hoja santa (folha cujo sabor lembra especiarias como anis e noz-moscada), a jícama (um tubérculo adocicado) e o huitlacoche (o fungo do milho, um desabrochar negro no meio da espiga, considerado iguaria).
No Pujol, a hoja santa envolve o tamal (a pamonha mexicana) servido com salada de feijão e coalhada. Ainda ali, um dos pratos que mais chamam a atenção é o huitlacoche com moela e fígado de galinha. Cru, o fungo tem sabor suave, quase doce. Ganha potência de acordo com os ingredientes da receita.
Outra preciosidade mexicana é a jícama, tubérculo cuja textura lembra a pera, macia e suculenta. Encontra-se ela crua polvilhada com pimenta em qualquer esquina. Essa combinação virou o sorvete pico de gallo na sorveteria QBE – a baixa temperatura é o alento em meio ao ardor.Onde. Quintonil. R. Isaac Newton, 55. www.quintonil.com.