No panteão dos produtores que faturaram o prêmio máximo no último Mondial du Fromage et des Produits Laitiers de Tours, na França, que ocorreu entre os dias 12 e 14 de setembro, cinco queijeiros brasileiros figuram entre pesos-pesados, aqueles que conquistaram as desejadas e raras medalhas super ouro.
A distribuição das medalhas funciona da seguinte forma: os jurados de cada mesa avaliadora, escolhidos a dedo pela organização do concurso, dão notas individuais, de zero a 20, para cada queijo (máximo de cinco pontos para aparência externa, cinco pontos para aparência interna, e dez para os quesitos sensoriais). Os queijos não concorrem entre si, podendo haver mais de um (ou vários) ouro, prata ou bronze na mesma mesa. Depois que todos os queijos são avaliados, a mesa pode ou não conferir a medalha super ouro a um único queijo, caso considerem-no com qualidade muito acima de seus pares.
No total, considerando ouro, prata, bronze e super ouro, o Brasil angariou 57 medalhas, perdendo em número apenas para a França.
De olho na evolução do queijo brasileiro, cuja excelência vem, ano a ano, sendo reconhecida internacionalmente, o Paladar buscou saber quem são os quatro queijeiros mineiros e a única queijaria paulista que faturaram o tão cobiçado super ouro. A seguir, confira um pouco sobre suas trajetórias na produção dos queijos até chegar ao pódio.
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Cana e queijo, um premiado brinde mineiro
Mal pousou em São Paulo, de volta da França, onde foi acompanhar de perto seu queijo Quilombo na cachaça conquistar a cobiçada medalha super ouro no concurso mundial, e o mineiro Ivacy dos Santos (@queijoquilombodoivacy) já viu seu celular pipocar de mensagens dos clientes atrás da tal peça premiada. "O pessoal vai ter que esperar, esse queijo ainda precisa de alguns meses de maturação, fiz poucas peças para o concurso e não imaginei que faria esse sucesso", conta Ivacy, por telefone, enquanto espera o ônibus para continuar a viagem de volta para casa, até Sabinópolis, na região do Serro.
O queijo campeão foi uma experiência de Ivacy, que está na terceira geração de produtores da região queijeira mineira, com seu outro filhote, o Quilombo tradicional, também medalhista no concurso, de prata. Maturado em tábuas de madeira por oito meses, com passagens na cachaça, "uma muito boa que eu tinha em casa para beber no final do expediente", o queijo adquiriu, por baixo da casca mofada, textura macia e amanteigada, com leve acidez e toque condimentado. Ele só não entrega o rótulo da caninha, "tem muita cachaça boa lá na minha região, dos meus colegas, não quero criar intriga", brinca.
O Quilombo na cachaça é o primeiro queijo da região do Serro a conquistar a rara façanha, mas seu outro queijo, Quilombo, já fez aparições e conquistou pódios, inclusive na França em 2019. Resultado de mais de 15 anos de trabalho de Ivacy com queijos do Serro, região produtora mais antiga de Minas Gerais, localizada na Serra do Espinhaço no centro-nordeste do Estado, com mais de 300 anos de história.
Assim como na Canastra, o queijo do Serro é produzido com leite de vaca cru e também passou recentemente por um resgate da tradição, quando seus produtores começaram a deixar para trás o queijo fresco de casca lisa e massa branca, de pouco valor no mercado, para apostar nos maduros e complexos, enrugados pelo mofo e acidez marcante, características típicas dos queijos da região, como os de Ivacy. O clima, a altitude e alimentação natural "minhas vacas são mais felizes, passam a maior parte do tempo no pasto, quase não dou ração" conta com orgulho, refletem em um leite mais gordo e no sabor do seu queijo.
A essas horas, Ivacy já chegou ao Serro, torcemos para já esteja tratando de cuidar dos seus queijos para que cheguem logo por aqui e brindando a conquista com a dita cachaça.
A mineira teimosa
Da teimosia de Lúcia nasceu, olha só, o bicampeão Canastra do Ivair (@queijodoivair) – o primeiro super ouro veio na competição de 2019. Esse queijinho que surpreende por onde passa tem massa macia e bem cremosa, casca rústica, enrugadinha, recoberto com mofo branco. Bem diferente do típico Canastra, que é mais firme, amarelinho e lustroso. Era esse queijo, "que parece uma medalha de ouro", conta Lúcia, que Ivair cismava em produzir no seu sítio Bela Vista, na tradicional serra queijeira de Minas.
Mas quem teimava mesmo em parecer eram os fungos esbranquiçados na casca do queijo, "toda vez que ia alguém em casa, ele me pedia para lavar e polir os queijos", para ficarem iguais a uma "moedinha". Ela, que, até ver a queijaria ir para frente, tinha uma confecção na cidade, decidiu esconder um dos queijos mofados para ver no que ia dar: "eu achava aquilo bonito, tinham uma textura sedosa, parecia um tecido de veludo e o aroma me intrigava", conta. Ivair insistiu que aquilo não prestava. "Quando abrimos o primeiro, o interior era branquinho e cremoso". Ainda se passaram algumas semanas antes do marido provar pela primeira vez o tal queijo "sujo". "Não gostou, mas falou que se eu quisesse continuar a testar, devia seguir em frente, não ia mais reclamar".
Localizada a 730 metros de altitude, o sítio Bela Vista fica em um vale com clima, altitude e terroir bem marcados. Com umidade acentuada que colabora no aparecimento do tal fungo penicillium, responsável pelo mofo branco que traz a tipicidade do queijo do casal – muitas vezes descrito como similar a um brie francês, mas aqui entre nós, nem vale comparar.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Lavras (UFLA) analisou queijos de diferentes produtores da região, no resultado, eles identificaram que os queijos de Ivair e Lúcia é o que continham mais espécies de leveduras, fungos e bactérias. "Por essa variedade de microorganismos que temos, no ambiente, no solo, no leite, é que faz nossos queijos ficarem com tanta personalidade", conta a queijeira, que hoje é a responsável pela produção diária de pouco mais de 30 peças, além de cuidar de outros 500 queijos em diferentes estágios de maturação na queijaria, que envolve, entre outras atividades, virar cada um deles diariamente. Os queijos de Lúcia e Ivair ficam até 18 meses maturando nas prateleiras de madeira.
Produção da tarde. Não estranhe se na hora de ir atrás da sua peça do queijo do Ivair encontrar duas opções, produção da manhã ou da tarde. Acontece que as sacadas de Lúcia que levaram o queijo mineiro duas vezes ao pódio não pararam no cuidado com mofo. Com a necessidade de aumentar a produção, o casal arrematou um punhado de vacas do irmão de Lúcia, só que o novo rebanho tinha que ser ordenhado duas vezes ao dia – de manhã e à tarde.
Contrariando as convenções mineiras, que falavam que não se faz queijo com o leite da segunda ordenha, Lúcia mais uma vez desafiou os paradigmas: "Eu perguntei por aí, por que não? Ninguém sabia me responder, só diziam, ‘por que não, uai’. Mandei analisar o tal leite da tarde e descobri que ele era mais encorpado e com maior teor de gordura". O resultado é um queijo com massa ainda mais cremosa, macia e sabor mais intenso que o da manhã. "Eu prefiro o da tarde, o Ivair, o da manhã." E ele, enfim, tomou gosto pelo queijinho mofado. É por essas e outras, que o mineiro tem fama de teimoso, ainda bem.
Tecnologicamente artesanal
Natural, tecnológico e artesanal. Esse é o slogan da Pardinho (@pardinhoartesanal), única queijaria paulista, entre outras quatro mineiras, a faturar o super ouro no mundial de queijos. Explica-se: a produção dos laticínios segue as premissas de um fazer artesanal – com leite cru de gado próprio, alimentado pasto –, mas sem dar as costas a tecnologias que garantem estrita qualidade sensorial e sanitária aos produtos. Além da triagem diária do leite, com testes rápidos para detectar desvios nas características microbiológicas, os queijos são maturados em cavernas subterrâneas com temperatura e umidade controladas. “Qualquer ligeira mudança nos parâmetros, já recebo um aviso no meu celular”, conta Vanessa Alcoléa, gerente técnica da Pardinho e vice-presidente da Guilde Queijeiros Brasil.
Tal rigor tem garantido resultados. Além do super ouro, honraria máxima no concurso, a Pardinho volta para casa com outras três medalhas, uma de ouro e duas de prata. Em 2019, na estreia da queijaria no concurso, foram duas, um super ouro e outra de prata. “Os prêmios mostram que estamos no caminho certo”, celebra Vanessa.
No portfólio da queijaria, o Cuesta, primogênito, é feito 100% a partir de leite da raça gir. Durante a maturação, as peças entram em contato com um fungo especial que lhe garante o visual característico. Os demais queijos, batizados como Cuesta Azul (mofado), Cuestinha e Mandala (de casca lavada à mão, duas vezes por semana), são feitos com leite de vacas “girsey”, como são carinhosamente chamadas na fazenda. Trata-se do cruzamento de gado gir com jersey, que garante um leite com alta concentração proteica, comum na raça gir, com o incremento da gordura característica do leite da raça jersey.
Atualmente, a fazenda produz cerca de 800 litros de leite por dia, que rendem de 90 a 100 quilos de queijos, vendidos em todo o Brasil.
O queijo casamenteiro
Nos concursos não tem essa coisa de contar sobre a produção, tradição ou história, o que vale é o queijo na tábua e na boca. No caso do Santo Casamenteiro, da mineira Cruzília, nem foi preciso. O queijo arrematou a medalha super ouro por sua combinação inusitada de ingredientes e sabores. Mas sua história vale, sim, ser contada.
Criado pelo filho do fundador da queijaria mineira, Luiz Sérgio Medeiros de Almeida, em uma brincadeira experimental, ele combina o queijo azul da marca, um primo distante do gorgonzola, mais suave e cremoso, intercalado com três camadas de recheio de cream cheese com pedacinhos de damasco e nozes, decorado com mais nozes e damascos no exterior. Note: todos itens que você encontra em uma tábua de queijos.
"Era produzido apenas sob encomenda, como um bolo de casamento mesmo", conta Juliana Jessen, mestre queijeira e coordenadora de produtos da marca. "Levamos ele para alguns concursos, e ele começou a ser reconhecido. Na França mesmo, já havia conquistado a medalha de ouro." Nessa época, em 2017, era apenas chamado de queijo azul com damasco e nozes. Foi quando decidiram investir nele: contrataram uma equipe de mulheres, "a montagem é delicada, como a de um bolo", explica Juliana, só para a sua produção. "Pouco tempo depois, todas foram pedidas em casamento", se diverte Juliana, contando sobre a lenda que envolve o queijo, desde então rebatizado como Santo Casamenteiro. Atualmente sua produção diária bate os 500 quilos, e virou item indispensável nas bodas da região ,"tem gente que vem aqui e leva uma peça inteira para servir no casamento, ou dar de lembrança para os convidados".
Folclores à parte, vale ficar de olho nos queijos produzidos pela Cruzília. A empresafundada em 1948, inicialmente como uma pequena banca no Mercado Municipal de São Paulo, cresceu e, ao final da década de 1980, ganhou laticínio próprio em Cruzília, no Sul de Minas Gerais, ao pé da Serra da Mantiqueira.
Hoje, a marca, que é um misto de artesanal com industrial, após ser arrematada por um fundo de investimento, conquistou medalhas em todas as categorias do concurso. Além do Casamenteiro, o Lenda, um queijo firme e picante com mais de 100 dias de maturação, levou o ouro; enquanto outros dois queijos, inéditos (ainda nem lançados no mercado), o Manto da Serra e Serra da Mantiqueira, conquistaram as medalhas de prata e bronze, respectivamente.
Santo mofo branco
“Tem dó, larga de contar mentira”, devolveu Sergio de Paula Alves (@queijodoserjao) ao amigo que o parabenizava, diretamente de Tours, na França, pela conquista da medalha super ouro no mundial de queijos. “Só acreditei quando li meu nome na lista”, conta o queijeiro, que não pode ir à Europa, mas tratou de mandar seus queijos na mala dos parceiros da SertãoBras. Além do Canastra Serjão, maturado por 100 dias, que recebeu a honraria máxima do concurso, a versão do mesmo queijo, curada por 18 dias, faturou a medalha de prata. Em 2019, quando participou do concurso pela primeira vez, Serjão conquistou uma medalha de bronze.
A empreitada com os queijos começou devagarinho, em 2016. “Eu digo que era um estágio. Fazia um queijo por dia, com o leite que tirava da única vaca que tinha à época”, relembra. Depois que o financiamento saiu, Sergio largou a carreira como corretor de seguros, além dos estudos na faculdade de Direito, para investir na queijaria e na compra de gado leiteiro da raça girolando.
Serjão segue à risca a cartilha da região da Canastra, onde fica a propriedade, em Piumhi. O modo de fazer, que aprendeu, principalmente, com queijeiros vizinhos, é o mesmo para todos os queijos - leite cru, prensado à mão, tudo de forma artesanal -, o que muda é o tempo de maturação das peças. E o mofo branco, que se propaga naturalmente no microclima do sítio, é o grande diferencial dos queijos do Serjão.
“Mas até eu descobrir isso, quase joguei 200 peças de queijo fora.” E foi logo na primeira grande leva produzida na queijaria. “Os queijos mofaram, tentei lavar as cascas para ver se resolvia, no dia seguinte, o mofo estava lá de novo. Isso se repetiu por dias, fiquei desesperado. Até que vieram alguns técnicos para analisar o ‘problema’, que, na verdade, é uma mina de ouro”, conta Serjão. Esse mofo é responsável pelo pela maior cremosidade e maciez dos queijos. Por hora, os queijos do Serjão só podem ser vendidos em Piumhi, já que a queijaria só possui o Selo de Inspeção Municipal (SIM), que permite a venda somente na própria cidade. “Estamos batalhando com vereadores e deputados para conseguir avançar na legislação. É um pecado que um queijo reconhecido fora do Brasil não possa ser vendido dentro dele. Quem sabe essa medalha e a visibilidade que vem com ela não ajudam?”. É o que torce Serjão.