Já no início do seu novo livro de receitas, a escritora britânica Ella Risbridger promete: “esta é uma história de esperança, de continuar querendo viver”. Mas, pouco antes, ela não queria mais viver.
No hospital para onde foi depois de saltar na frente de um ônibus em Londres, Risbridger começou de repente a pensar em assar uma torta. “Trabalhei cada ingrediente na cabeça, passo a passo. Quando o psiquiatra de plantão me perguntou por que uma torta, eu só conseguia pensar na crosta crocante, no alho-poró quase translúcido, na manteiga cheirosa, em ligar a mistura com farinha e leite.” Já em casa, com alguma ajuda, ela fez a torta.
Foi um pequeno triunfo que a fez ver que havia sobrevivido, que podia parar de chorar e, quem sabe, continuar cozinhando. Continuou.
Midnight Chicken: & Other Recipes Worth Ling For (em tradução livre, “Frango da meia-noite e outras receitas pelas quais vale a pena viver”; sem edição no Brasil) é o registro de como Risbridger reaprendeu a tocar a vida, “uma espécie de guia para voltar a amar o mundo”.
Ela não tinha intenção de escrever um livro de culinária aos 21 anos, num projeto que levaria cinco anos. Mas cozinhar salvou sua vida e ela quis passar isso adiante.
Midnight Chicken tem dupla finalidade. Risbridger compartilha sua depressão enquanto oferece receitas de felicidade. Além do frango assado do título, o livro ensina a preparar “chili e espaguete no limão para levantar o moral”, “mexilhões de afirmação de vida” e “salmão à moda a livraria, com arroz papa”.
Na introdução, o livro se apresenta logo como de autoajuda, “uma moldura de alegria para seu dia”. Cozinhar, disse a autora numa entrevista, é como “uma igreja com lugar para todos”, “uma viagem pela saúde mental e física de um jeito muito simples”.
Nutrientes ou afeto?
Discussões sobre equilíbrio físico e psíquico em torno da comida geralmente dividem as pessoas em dois grupos: as que exaltam os benefícios de certos ingredientes para o corpo e as que defendem a chamada “comida afetiva” - refeições que lavam a alma. O primeiro grupo é meio escravo da obrigação; o segundo parece sempre perseguido pela culpa. Antes de Midnight Chicken, o prazer de cozinhar, em si, era geralmente deixado fora da conversação, pelo menos em livros de culinária.
Fora dos livros de cozinha, muitos escritores falam do efeito positivo que cozinhar tem sobre eles. Em seu recente livro Eat Up! Food, Appetite and Eating What You Want (livremente, “Coma aquilo de que você gosta - e bom apetite!”), Ruby Tandoh defende o prazer de comer como arma contra as restrições da chamada “comida saudável” e da indústria de dieta alimentar.
Ela diz que seu relacionamento com a culinária confirma um estudo de 2016 segundo o qual jovens que participaram de uma experiência de cozinhar receitas não testadas sentiram-se mais motivados que outros que não haviam participado da pesquisa. “Passar meia hora por dia cozinhando, experimentando, testando, pode ser o suficiente para livrar das armadilhas da depressão”, escreve ela.
David Leite, criador do blog Leite’s Culinaria, fala abertamente de sua luta pela saúde mental. Em Notes on a Banana: A Memoir of Food, Love and Maniac Depression (“Notas sobre uma banana – memórias de comida, amor e depressão”, em tradução livre), ele lembra seu primeiro emprego de cozinheiro, na família de um professor universitário. Leite descobriu que arranjar os ingredientes na ordem certa (fazer o mise en place) lhe facilitava impor ordem e controle sobre outras coisas na vida.
Ann Yang, cofundadora da Misfit Foods, diz que cozinhar a faz aceitar melhor “a ideia de que as coisas podem não sair como você esperava”. Já o preparo de um prato complexo “traz a mesma satisfação criativa de pintar um quadro, principalmente se você, além de tudo, estiver cozinhando para pessoas que você ama”.
Cozinhar também pode ser um poderoso remédio contra a perda. Em julho, a advogada criminalista Olivia Potts lançou A Half Baked Idea (“Uma ideia semiassada”, em tradução livre), com lembranças de como enfrentou a morte da mãe.
Enquanto escrevia, a autora inglesa descobriu que cozinhar pode ser um ato “de meditação”, como esperar a marmelada dar ponto, “de elevação”, como tostar temperos numa frigideira, “de emoção”, como flambar crepes suzettes, e de “pura alegria”, como espremer o mel do favo. “Há algo de calmante nas receitas – instruções que, seguidas corretamente, levam a um resultado previsível”, escreve ela.
Midnight Chicken parece destinado a dar conforto a uma nova geração de cozinheiros. Para Risbridger, a chave para encorajar um encontro com a culinária é não forçar a barra visando a chegar à perfeição. Ela escreveu o livro como antídoto contra receitas minuciosas e contra a atual obsessão pela estética dos pratos. Garante aos leitores que suas receitas podem ser executados enquanto se toma um drinque, serem esquecidas no fogo além do tempo previsto e terem os ingredientes medidos sem precisão científica.
/ Tradução de Roberto Muniz