Por pelo menos 2.500 anos missô foi sinônimo de pasta de soja fermentada, um dos ingredientes básicos da culinária japonesa, essencial ao preparo do missoshiro, a sopa tradicional, que encerra a refeição. Bem, o condimento foi inventado na China e levado ao Japão por monges budistas, mas a questão agora é outra: essa história milenar está mudando. A sopa é apenas o começo e a soja, só a primeira opção. Chefs de diferentes vertentes culinárias estão fermentando uma infinidade de ingredientes, muito além da soja, para fazer essa pasta usada como base de muitos pratos.
O missô surgiu como uma maneira de conservar a soja, possibilitando seu uso durante o inverno. Mas acabou se popularizando pelas características que confere aos pratos – sabor intenso e complexo, com notas doces, notas de assado e ésteres que lembram abacaxi, como descreve Harold McGee em seu Comida & Cozinha. O missô dá um delicado e desejável gostinho “levemente estragado”. A chef Mari Hirata, nipo-brasileira que vive no Japão, conta que no Japão muitas receitas acabaram trocando o sal pelo missô. Missô, shoyu e saquê são aparentados. Os três fermentados, os três descendentes do mesmo fungo, o Aspergillus oryza. E cada uma das três famílias têm incontáveis variações. No caso do missô, a fórmula é basicamente a mesma, leva o arroz fermentado com o fungo Aspergillus oryza (chamado de koji), sal e algum grão cozido (tradicionalmente soja, mas pode ser cevada, trigo, arroz), a mistura fermenta em barril em temperatura de 30ºC a 38ºC.
Mas a partir daí há dezenas de variações possíveis, nas proporções, quantidades e qualidade de ingredientes. Além disso, o que define o tipo do missô é o tempo de fermentação: quanto mais tempo, mais forte, mais complexo o sabor, mais salgada e mais escura a pasta. O tempo mínimo de fermentação é de três meses, mas pode se estender por até um ano ou mais. O princípio é o mesmo também para os diferentes tipos de missô que andam se apresentando nas cozinhas para temperar, marinar, glacear e saltear carnes e legumes.
O que atrai os cozinheiros – e comensais – é o umami presente no missô, o quinto sabor, que pode ser traduzido como uma sensação de conforto. O colunista do jornal New York Times Mark Bittman, autor de vários livros de receita e admirador declarado do missô tradicional, já confessou que, se pudesse levar só um ingrediente para uma ilha deserta, levaria o missô. Nem é preciso dizer que ele usa missô em dezenas de pratos, já comparou a pasta de soja ao queijo parmesão italiano, no quesito umami, e para provar que a comparação faz sentido trocou o queijo pelo missô no pesto genovês.
Outro chef que se apaixonou pelo missô tradicional foi o dinamarquês René Redzepi, do Noma, em Copenhague. Ele instalou um laboratório de fermentação num contêiner, nos fundos do seu restaurante, que já chegou a ser o primeiro do mundo no ranking do 50 Best, e usou o missô tradicional como ponto de partida para fazer dezenas de variações. Faz missô de trigo sarraceno com ervilhas amarelas, uma variedade local, e já contabiliza 40 tipos de missô – além de conservas e fermentados.
No Brasil também há chefs apostando nos sabores que o missô oferece e nas possibilidades de variação. O chef Gabriel Broide, do Mina, em Campos do Jordão, faz missô de pinhão. Ivan Ralston, do Tuju, fez diversos testes com missô e no cardápio atual de seu restaurante, na Vila Madalena, serve tutano com missô de castanha portuguesa; e também uma salada de nabos e sofrito com missô de castanha-do-pará. Ambos são preparados pela pesquisadora Marisa Ono.
Flávio Miyamura, do Miya, em Pinheiros, trabalha com missô há muitos anos, mas agora está fazendo a própria pasta em vez de comprá-la pronta. Ele foi um dos primeiros na cidade a usar o missô em pratos ocidentais. O cardápio que está em cartaz oferece um bacalhau marinado no missô doce por 24 horas, um prato muito suave. Já à costelinha de porco a pasta mais escura confere cor e um glaceado como se tivesse sido feito com açúcar.
Vertentes. O novo uso do missô tem duas vertentes. Há chefs que fermentam diferentes grãos, leguminosas ou castanhas para obter a pasta, e outros que misturam a pasta de soja fermentada pronta a diferentes produtos, conseguindo sabores completamente distintos.
É o que faz Tadashi Shiraishi, do UN, nos Jardins. Ele combina a pasta de soja com nozes pecã torradas, saquê e açúcar, que descansam juntos por uma semana antes de ir à mesa acompanhando barriga de porco.
O precursor desta onda do novo uso do missô foi David Chang. O chef americano descendente de coreano, que comanda a rede de restaurantes Momofuku nos EUA, é um fanático pela pasta de soja fermentada. Apaixonou-se por seu sabor intenso e complexo durante uma viagem ao Japão, há alguns anos, e disse que teve uma epifania culinária ao provar “os verdadeiros missôs”. De volta à América, o chef percebeu a dificuldade de encontrar uma boa pasta de soja fermentada e resolveu fazer a própria. Começou pela tradicional, mas em pouco tempo já estava ousando e fazendo experiências no seu laboratório instalado desde 2012 no Brooklyn.
Entre os missôs ousados, Chang fez um de pistache (fez tudo à moda tradicional, porém no lugar da soja usou o pistache). Para incluir a pasta tradicional no dia a dia, Chang tem uma receita: basta combinar 2 partes de missô branco para 1 parte de manteiga sem sal e servir com aspargos, milho ou em qualquer lugar que você pensaria em servir ou fazer com manteiga ou maionese.
A lógica de Chang em relação ao missô de produção própria é parecida com a de alguns chefs por aqui. Até se encontram missôs nacionais de qualidade, mas por que não trabalhar com ingredientes locais e aproximar o condimento do gosto do brasileiro? Foi esta inquietação que motivou Broide a explorar os ingredientes da sua região, a Serra da Mantiqueira, na produção do seu ‘filho’, como ele mesmo se referiu ao missô de pinhão. Com o intuito de prolongar o uso do pinhão para além da temporada e de fugir dos métodos tradicionais de conservação de alimentos, como defumação e salmoura, o chef, declaradamente inspirado por Chang, experimentou misturar o koji com o pinhão. Depois de dois meses, tinha em mãos o seu missô artesanal de pinhão da Mantiqueira.
A pasta logo entrou no cardápio do restaurante, em pratos como a barriga de leitoa caipira, na berinjela marinada com magret de pato e na sopa. “Não adianta inventar muito na receita, o missô já é um produto bem diferente, queria que as pessoas tivessem uma referência em relação ao missô tradicional e este criado pro mim.” O chef não vai parar por aí – com a chegada da temporada da sapucaia e da castanha portuguesa, as castanhas da região, vai produzir novos lotes com produtos locais, marca de sua cozinha.
Basta uma corrida até a Liberdade para encontrar missô pronto – se possível, compre um artesanal. São muitos tipos e cores, vá testando, mas lembre-se: quanto mais escuro, mais complexo e intenso. Se você for um iniciante, comece pelos claros. E siga algumas dicas:
Quer se aventurar?
1. Para extrair o melhor do missô, não ferva a pasta e use-a só no fim da receita.2. Na hora da marinada, use à vontade, mas depois tire o excesso. 3. Depois de aberto, o missô pode durar até anos na geladeira se bem embalado.