Quando beirava a adolescência, aos 12 ou 13 anos, a argentina Paola Carosella achou na TV e no programa de culinária Utilíssima um tapa-buraco para a solidão de esperar a mãe chegar em casa todo dia após o trabalho. Ocupava o tempo cozinhando e montando a mesa, aprendendo truques e improvisando com os ingredientes que tinha na geladeira, conta ela no seu primeiro livro, Todas as Sextas, a ser lançado no dia 8 de novembro em São Paulo.
Mais de 30 anos depois, ela própria está na TV, em rede nacional com o programa Masterchef Brasil, e traz a história da sua vida a público num livro que mescla autobiografia e receitas.
“Eu não reparei que estava abrindo tanto o meu coração até que o livro estava impresso”, disse a chef ao Paladar num papo no seu restaurante Arturito. “Eu também sentia que um dos motivos pelos quais eu tinha que contar a minha história era por causa do Masterchef. O programa mostra uma única Paola. É difícil imaginar o que aconteceu antes comigo.”
Assim, ela conta como foi entrar no mundo da cozinha ainda em Buenos Aires por volta dos 18 anos, conhecer chefs na França e trabalhar com o “pitoresco e colorido” Francis Mallmann. Foi por causa dele que ela chegou a São Paulo, em 2001, para abrir a Figueira Rubaiyat e, depois, construir a sua própria história.
É do Arturito, seu restaurante em Pinheiros, que sai o nome do livro, Todas as Sextas, já que a sua “volta” à rotina da cozinha depois de um tempo voltada à burocracia da casa se dá quando ela resolve preparar o menu-executivo “todas as sextas”.
Polvo na chapa à provençal com feijão manteiguinha, barriga de porco braseada lentamente com molho gribiche, joelho de porco com verduras e mostarda de Dijon - são receitas como essas, executadas para o menu de sexta-feira, que preenchem o livro, lançado pela Melhoramentos.
As fotos são de Jason Lowe, que Paola conheceu por admirar seu trabalho e hoje é marido da chef. O trabalho do fotógrafo guarda a peculiaridade e a estética ímpar de ser realizado com filmes analógicos numa Hasselblad de 1970. Confira a seguir trechos da entrevista com Paola.
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Em que ritmo você escreveu o livro? Ao lê-lo, tem-se a sensação de que você sentou e jorrou as memórias de uma vez.
Não... (risos). Eu comecei o primeiro capítulo dois anos e meio atrás. Havia um pedido de outra editora, não funcionou, mas daí já havia a ideia de eu querer fazer um livro. Eu conheci o Jason (Lowe, seu atual marido) por causa disso e fizemos algumas fotos. Mas ainda não sabia qual era a coluna vertebral do livro.
Não me sentia confortável de fazer um livro “receitas da Paola” ou “receitas do Arturito”, precisava de algo mais sólido. Daí um dia pensei nos menus de sexta-feira do restaurante, porque foram eles que me conectaram com a cozinha depois de um momento muito intenso como “empresária”. Assim eu também poderia escolher as receitas, pois tenho 25 anos de cozinha, como afunilar as receitas?
Você fala em receitas, mas o livro também é uma autobiografia com nome e sobrenome de pessoas que passaram pela sua vida, momentos íntimos.
Eu não reparei que estava abrindo tanto o meu coração até que terminei o livro, até que ele estava impresso, na verdade. Acontece que eu não sabia como contar essas coisas se não trazendo as pessoas. Tem algumas ironias com algumas pessoas que pertencem a um passado muito distante, que não vão ler o livro (risos).
Mas eu não podia não falar do Francis Mallmann e não podia não contar com os poucos recursos literários que eu tenho o quão pitoresco e colorido ele é, o quanto ele mudou a minha vida. Eu não podia não falar dos Belarminos, do jeito que as coisas foram.
Se fosse para ser uma biografia escrita por uma ghost writer, eu preferia não fazer livro. Eu também sentia que um dos motivos pelos quais eu tinha que contar a minha história era por causa do Masterchef. O programa mostra uma única Paola, dentro de um frame. É difícil para quem vê essa Paola imaginar o que aconteceu antes comigo.
Sobre essa imagem, você fala no livro dos momentos em que é “sargento” e das meninas lindas de cabelos soltos na cozinha de Francis. Quem é Paola hoje?
Eu consegui um equilíbrio, consegui montar uma cozinha por meio de muita disciplina. Consegui montar estruturas de trabalho e estruturas de pessoas que me acompanham e entendem essa disciplina. A disciplina existe, mas deixa que a gente seja amoroso nela. Eu não preciso ser mais sargento.
A Paola sargento aparece em Los Negros (restaurante de Francis Mallmann no Uruguai) em 1997 é porque a cozinha de lá era muito desorganizada. Se você quer que o resultado tenha muita qualidade, você tem de colocar muita disciplina. E, se você tem de colocar disciplina em quatro dias, como faz? Ou você vai embora ou alguém tem de gritar mais alto. Segundo Francis, foi a melhor temporada de Los Negros até hoje.
Tenho 25 anos de cozinha, 44 de vida, que faço agora em outubro, então ao longo do tempo você vai construindo, minimizando os excessos. O ziquezague entre os extremos fica cada vez mais suave. Você consegue um jeito de ter disciplina sem gritar. Tenho braços-direitos hoje que só com o olhar sabem o que precisa ser feito. Não o que “eu” quero, mas o que precisa ser feito no restaurante.
Como está hoje a sua rotina depois do período em que virou dona sozinha do Arturito e, desde 2014, com a ajuda de um novo sócio, Benny Goldenberg?
Benny entrou na minha vida e foi sensacional. Sou eternamente agradecida, porque ele me dá toda a estrutura que eu nunca tive para que eu possa ser uma cozinheira e para que também possa me aventurar em outras coisas, como a TV, que eu gosto de fazer e acho muito legal, e ainda o La Guapa (casa de empanadas), que ele fez crescer com sua força locomotora.
Hoje, sou eu que faço as mudanças do cardápio do Arturito, faço a ponte entre o que vai ser feito e os produtos que quero usar. Me relaciono muito mais com os produtores (como a Cooperapas, em Parelheiros). Nesse período de mudança, a cada três meses, eu me jogo dentro da cozinha, sou eu que comando os 15 ou 20 dias que demora esse processo. Tenho duas mãos direitas, Lucas e Mariú, que assumem depois que eu saio.
É um sistema que funciona porque toda brigada de cozinheiros precisa se manter vibrante e excitada. Ao mesmo tempo, você não pode viver em constante vibração. Então, ok, temos o cardápio novo, estamos empolgado, daí faz-se a repetição e cansa. Na hora em que você cansa está na hora de mudar o cardápio de novo.
E como é a sua presença hoje no restaurante, mesmo fora da cozinha?
Eu gostaria de estar mais no salão, mas tem muito pedido de foto. Isso não me incomoda, mas sinto que pode incomodar o cliente ao lado. Eu quero satisfazer esse pedido de foto porque entendo de onde vem o carinho, mas talvez a pessoa ao lado tenha vindo pela comida, não por mim. Então, não quero atrapalhar. Às vezes não estou tanto no salão quanto gostaria.
Como você vê hoje a cena dos orgânicos em São Paulo, que eram tão inacessíveis quando você abriu o Julia Cocina, em 2003?
Lindíssima. Acho que é o melhor momento: quando não está tudo feito ainda, tem muito para se fazer, então nós cozinheiros conseguimos nos envolver no processo de trabalhar em conjunto. A cena hoje não se compara com a época quando abri o Julia. Nem se compara. Hoje você consegue ovos orgânicos, de galinhas felizes, porcos criados soltos, pancs (plantas alimentícias não convencionais), queijos brasileiros, chocolate feito à mão. O cenário está incrível.
No livro, você fala do impulso que o programa de TV Utilíssima te deu, e hoje é você que está na TV. Qual a diferença daquele tempo para hoje? E do papel da TV?
Difícil essa pergunta porque eu nasci inspirada na cozinha, venho de um berço onde tem muita cozinha. Então, a Utilíssima foi a minha companhia na solidão da minha adolescência e o que me fazia cozinhar para esperar a minha mãe. Mas o amor pela comida veio das minhas avós.
Hoje, vejo como o Masterchef inspirou muita gente. Não sei se a escolher a profissão de cozinheiro, mas a cuidar mais do que come, a deixar um pouco os industrializados de lado e a se aventurar na cozinha. É isso o que mais me interessa, que as pessoas não abandonem essa arte que é tão fundamental na construção de uma sociedade.
A atual temporada do programa, com profissionais, terminamos de gravar no último sábado e para mim foi a melhor que a gente fez. A gente fala muito da importância da formação, da não improvisação. Eu acho muito legal que a gastronomia seja uma opção de trabalho. É importante que se saiba que não é uma profissão que paga muito bem.
Mas a gastronomia tem esse poder de ser muito inspiradora e muito cativante para quem a faz. Os mais honestos são aqueles que sobrevivem apesar de não ganharem dinheiro por muitos anos.
Estando no ponto a que chegou hoje, sente saudade de alguma coisa do passado?
Sinto saudade dos tempos em que a única coisa que eu tinha que fazer na vida era cozinhar. Muitas saudades. Era muito simples. Não estou falando que não gosto do meu momento. É só uma nostalgia. Estou muito feliz e muito agradecida, a gratidão é tanta que às vezes sai do meu peito.
Mas sinto falta desses dias em que eu chegava de manhã na cozinha, abria a janela, deixava entrar o sol, pegava a xícara de café, montava minha mise en place perfeita e a única coisa que tinha que fazer era isso. Não tinha que pegar o celular e ficar respondendo perguntas para todo mundo. Naquela época, não havia outra distração.
Por mais que eu adore fazer mil coisas ao mesmo tempo, sinto saudades de ter tempo de fazer uma coisa por vez. E cozinhar, ser uma cozinheira que toca uma praça de um restaurante, não necessariamente a pessoa mais importante do restaurante. A ideia de ser uma anônima que está fazendo o seu trabalho me acalma, sabe?
Confira outras fotos feitas por Jason Lowe para o livro e mostradas pelo Paladar em primeira mão em março deste ano.
SERVIÇO
Todas as Sextas Autora: Paola Carosella Editora: Melhoramentos (352 páginas, R$ 139) Lançamento no dia 8/11, às 18h Livraria da Vila - Al. Lorena, 1.731, Jardins, tel. 3062-1063 A compra do livro nesta livraria a partir do dia 1º/11 dá direito a uma senha para a noite de autógrafos. Só serão distribuídas 400 senhas, e as fotos com a chef serão feitas por fotógrafo no local.