Eram 17h30 da sexta-feira (12) na Cidade do México (21h30 em Brasília). Giovanna Grossi olhava para o chão, com a expressão séria e a cabeça abaixada. Pai, mãe, tios e primos estavam por perto, com os olhos nela. Mas a jovem cozinheira não buscava refúgio em ninguém. Apertava o mastro com a bandeira do Brasil, talvez para não deixar escapar o nervosismo.
Já haviam sido anunciados o terceiro e o segundo lugares da etapa latino-americana do Bocuse D’Or, respectivamente para o guatemalteco Marcos Saenz e a uruguaia Jessika Toni. Faltava o primeiro. Apenas esses três entre os dez competidores ganhariam o passaporte para a final mundial do Bocuse D’Or na França, que será em janeiro de 2017, com 24 países.
O peruano Gastón Acurio, presidente do júri, enfim, anunciou pelo microfone: “Em primeiro lugar, com um charmoso trabalho, Brasil”.
O Brasil, no caso, era a alagoana de 24 anos, primeira mulher brasileira a participar da competição, considerada a Copa do Mundo da gastronomia, talvez o concurso de gastronomia de maior prestígio no mundo. Desde que foi criado, em 1987, a melhor colocação do Brasil foi 10º lugar, com o piauiense Naim dos Santos em 1997. Até hoje, nenhum País das Américas ganhou lugar no pódio.
A vitória de Giovanna na final latino-americana é boa notícia para a gastronomia brasileira, sempre às voltas com questões como a formação de seus profissionais e o reconhecimento institucional da área.
De um lado, o mundo da gastronomia no Brasil se queixa da falta de estímulo do governo (países vizinhos, como o Peru, têm política governamental de apoio à gastronomia, gerando frutos imediatos, como o crescimento do turismo e uma coleção de premiações).
Do outro lado, reclama da frágil formação de seus jovens cozinheiros, mais voltados às estripulias da cozinha tecnoemocional da vanguarda espanhola do que ao rigor técnico e algo contido das bases da cozinha francesa. Isso sem falar no apelo da fama, que leva iniciantes a buscar ascensão imediata ao posto de chef, em contraste com a vagarosa escalada na rígida hierarquia da cozinha.Leia entrevista com o chef Laurent Suaudeau sobre a importância da vitória brasileira
Ao ouvir “Brasil”, Giovanna foi levantada por seu assistente, o cumim Nicholas Santos, 21 anos. O discreto chef francês Laurent Suaudeau, presidente da delegação brasileira, alargou-se num sorriso e apontou com os dois dedos indicadores na direção da torcida brasileira, enquanto aguardava Giovanna pisar de volta ao chão.
A prova que deu o pódio a Giovanna havia sido na véspera. Ela e Nicholas tiveram 5h35 para preparar um prato com peixe e um com carne, dez porções de cada. A apresentação cronometrada incluía do mise-en-place (pré-preparo) até a montagem dos pratos, com três acompanhamentos e a decoração cheia de gotas de molho e brotos.
Parecia um balé, ensaiado várias vezes com o rigor necessário para um grande concerto. E de fato foi isso o que aconteceu – uma repetição à exaustão preencheu a rotina da equipe brasileira nos meses anteriores, para que nenhum detalhe escapasse. Trabalho que o Paladar acompanhou durante um dia em São Paulo. A SAGA DA VITÓRIA BRASILEIRA
Eram 16h04 do dia 21 de janeiro quando Giovanna Grossi e Nicholas Santos terminaram os pratos. Faltava um minuto para o cronômetro apitar e menos de um mês para a final latino-americana no México. Era o fim de mais um dia de treino, na Escola Laurent, este acompanhado pelo Paladar. O ensaio reproduzia milimetricamente o que a dupla enfrentaria no México.
De segunda a sábado, das 8h às 21h, lá estava Giovanna vestindo sua dólmã impecavelmente limpa e engomada, na Escola Laurent, no Jardim Europa. O trabalho seguia o ritmo da competição, começando pela separação dos ingredientes e terminando com a montagem de 20 pratos. Todo santo dia, repetição atrás de repetição, sem intervalo para ir ao banheiro.
Ela nem olhou para repórter ou fotógrafo antes que terminasse a “apresentação”. No fim de cada dia, Giovanna, Nicholas, Laurent e o coach Victor Vasconcellos, ou o braço-direito de Laurent, Andrews Valentim, discutiam erros e acertos. No maior rigor. Uma semana antes da prova, a execução dos pratos ainda sofria ajustes.
Cara de cansada, a cozinheira alagoana estava em São Paulo havia quase três meses. Tirou folgas apenas aos domingos, e ainda assim pensando no concurso. Foi com a cabeça cheia que ela e equipe passaram as festas do fim do ano, já que a organização só informou qual seria o peixe utilizado na competição – tilápia – no dia 23/12 (a carne, filé-mignon, já era conhecida desde 20/11).
Ingredientes confirmados, a cada dia, durante 23 dias, ela preparou cerca de 5 kg de filé-mignon e 4 kg de tilápia.
Não houve patrocínio financeiro – insumos foram custeados pela organização do evento (leia a entrevista ao lado). “Tudo está errado na promoção do talento no Brasil. Ninguém te ajuda a chegar lá. Só querem reconhecer quando você já chegou”, disse Laurent Suaudeau, durante o treino de Giovanna.
A partir da definição do peixe e da carne, os pratos foram pensados como um todo. Os ajustes iam surgindo a cada treino. “No papel, tudo é lindo, mas na prática é outra coisa. Fizemos testes, por exemplo, com batata-doce roxa, mas a cor não ficou boa no prato. Trocamos pela mandioca”, conta Giovanna.
Giovanna é vista por colegas como uma cozinheira que combina disciplina e técnica à disposição de treinar de maneira árdua e repetitiva.
A técnica ela foi desenvolvendo aos poucos. Depois de se formar na Universidade Anhembi Morumbi, foi para o Instituto Paul Bocuse, na França. Trabalhou em dois restaurantes classificados com três estrelas Michelin na Europa, o francês Maison Pic, de Anne-Sophie Pic, e o espanhol Quique Dacosta, do chef de mesmo nome.
“Morando dois anos na França, aprendi tudo de um jeito muito correto, o clássico. Na Espanha, deu uma bagunçada. Eles não são certinhos como os franceses, gostam de transformar os produtos. Mas acho legal dosar os dois”, conta ela.
A disciplina a garota de 24 anos diz ter herdado do balé, que começou a praticar aos 4 anos. “Balé é pura disciplina. Acho que sempre me coloquei mais pressão do que os meus pais me colocaram a vida toda.”
Ainda no México para curtir uns dias de folga com a família, que mora em Maceió, Giovanna volta em breve a São Paulo para decidir, com Laurent e sua equipe, como será sua preparação daqui para frente. Seu coach e seu cumim serão os mesmos na competição em Lyon, em janeiro de 2017.
Assim que for divulgado o regulamento do mundial, no segundo semestre, ela vai se enfurnar na escola de Laurent para treinar. Mas, até lá, a ideia é que faça estágios em restaurantes de amigos de Laurent na França, para praticar com outros chefs que entendem do concurso e da cozinha francesa.
GAMBIARRA
Sete pessoas, sete malas, sete vezes os ingredientes para fazer os 20 pratos apresentados no Bocuse D’Or – dez de peixe e dez de carne. O exagero foi precaução: é proibido entrar no México com frutas, verduras, sementes, bulbos e cereais na bagagem. Se uma mala passasse, a apresentação estava garantida. Nelas, embalados a vácuo, tinha tucupi, jambu, mandioca, chicória-do-norte, papoula. A banana-da-terra era o único item que estava em uma única mala, a de Laurent – e justo essa, farejada por cães na alfândega, foi inspecionada. Ficaram para trás a banana, a mandioca, a mandioquinha, a chicória.
O chef reclama da falta de apoio do governo brasileiro para o concurso e para enviar ingredientes de forma oficial. Ele afirma que tentou contato com a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, mas recebeu apenas respostas evasivas. “Eles sempre diziam que não era com eles”, conta o chef.
OS PRATOS CAMPEÕS
O prato de carne
Filé-mignon em crosta de carvão recheado de anchova e coroado por anel de farinha de mandioca e cúrcuma Bombom de foie gras com suco de pitanga preta e castanha-de-caju Quiabo com gotas de molho de tomate, farofa e sementes do quiabo Croquete de mandioquinha recheado com redução de caldo de carne
O prato de peixe
Filé de tilápia sobre acelga fermentada com flocos do peixe bonito; embaixo, emulsão de caldo de peixe e, por cima, crocante da pele do peixe Totem de mandioquinha recheado de farofa de farinha de uarini com tucupi e topo de emulsão de mandioquinha Bolinho de banana-da-terra e mandioca empanado com papoula Aspic de caldo de peixe com tucupi e jambu sobre tartar de camarão Molho de chicória-do-norte
A repórter viajou a convite da Gl Events, organizadora do evento