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Comida

Resgatar para não desaparecer: a doçaria tradicional brasileira vai bem, obrigada

Doceiras mantém métodos de preparo tradicionais dos doces que seguem a antiga fórmula: fruta, açúcar, água e fogo

Frutas cristalizadas estão entre os destaques da chamada doçaria tradicional brasileira. Foto: DivulgaçãoFoto: Divulgação
Frutas cristalizadas estão entre os destaques da chamada doçaria tradicional brasileira Foto: Divulgação

Em seu poema mais famoso, a poeta Cora Coralina indicava que, para recriar a vida, ‘remove pedras e planta roseiras e faz doces’. Esse era o conselho da goiana que trabalhou como doceira até se lançar à empreitada da poesia, aos 76 anos. Ela é uma boa representante das doceiras tradicionais que por décadas criavam seus doces a partir de uma simples fórmula: fruta, açúcar, água e fogo.

Por mais que as sobremesas com compotas de frutas tenham aquele gostinho de casa de vó, elas ainda hoje têm seu lugar à mesa – e negócios sobrevivem com a missão de resgatar receitas tradicionais e mostrar que a doçaria tradicional vai bem, obrigada. 

É o caso do tradicional Restaurante Xapuri, de Belo Horizonte. Em 1987, quando foi inaugurado, impressionava por sua extensa variedade de doces – mais de 30, todos feitos a partir de receitas de família. Nada mudou de lá para cá: a quantidade de delícias mantém-se intacta, assim como as receitas. “Isso ajudou a construir nossa reputação, porque as pessoas queriam trazer gente de fora para ver a cara de surpresa delas, já que o garçom levava mais de cinco viagens para servir todos os doces na mesa”, conta Flávio Trombino, a segunda geração à frente do restaurante. 

Flávio Trombino, a segunda geração à frente do Restaurante Xapuri Foto: Nereu Jr.

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A produção, por outro lado, foi impactada pela decisão da Anvisa de proibir o uso do tacho de cobre – importante ferramenta para as doceiras. A mãe de Flavio e fundadora do Xapuri, dona Nelsa Trombino, foi veementemente contra a decisão. O filho uniu-se a pessoas da área para tentar reverter a situação. “Mobilizamos uma audiência pública para discutir a falta de argumentação técnica-científica, e tivemos a grata surpresa de a Anvisa soltar outra portaria, há um ano, permitindo a volta do uso do tacho de cobre”, conta.

Por lá, os clássicos seguem em alta: doce de leite, goiabada, ambrosia são os mais pedidos. Tem, também, o tradicional doce de limão da casa, preparado por dias. É isso, aliás, que faz a mão de obra ser um dos desafios para manter um processo tradicional, na visão de Flavio. "Esse doce leva oito dias para ficar pronto, é o doce da casca do limão Taiti. Hoje a geração é muito imediatista.", analisa. Ao mesmo tempo pondera: “a tradição não pode ser imaculada e engessada, senão a gente não evolui.”

Uma visita à nostalgia

Poucos pratos despertam tanta nostalgia quanto um pavê de pêssego em calda ou uma compota de abacaxi com creme. Foi justamente na infância, vendo os doces feitos pelas matriarcas da família, que Carmen Pompermayer pegou o gosto pelas geleias e compotas. “Tem essas memórias afetivas que fizeram a gente gostar disso”, resume. Mal sabia que a ajuda para mexer o tacho na casa com oito irmãos a levaria a reproduzir os mesmos modos de preparos décadas à frente.

“Resolvi colocar em prática os segredos que eram sussurrados de geração em geração”, conta. “O objetivo foi resgatar para não deixar desaparecer.” Assim nasceu a Doces Carmen. O esboço inicial (então não oficializado) da confeitaria existe desde 1984 -- mas ganhou os moldes de empresa há cerca de 16 anos, quando, recém-aposentada, a gaúcha decidiu dar nome (o seu, no caso, mas com ‘n’ no final) aos seus quitutes.

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A memória afetiva não é apenas a da dona Carmem – as pessoas que compram seus produtos também são transportadas pelo sabor para outros tempos. “As pessoas sempre dizem: ‘eu venho aqui comprar porque (o doce) é igual ao que a minha mãe fazia para mim’”, relata. “É interessante como eles mantêm viva a nossa história, as nossas receitas e a lembrança de quem preparava isso.” A produção fica em Arvorezinha, interior do Rio Grande do Sul, a cerca de 200 quilômetros de Porto Alegre.

Doce de jaracatiá da Doces Carmen Foto: Divulgação

Fala-se em resgate pois muitas dessas receitas tidas como tradicionais da doçaria brasileira foram substituídas, em especial por outras que utilizam ingredientes industrializados. O leite condensado é peça central nesse contexto. Sua introdução está ligada à urbanização do País, que continuava com uma alta demanda de doce, mas com outra estrutura para as doceiras. "A indústria começa a oferecer produtos que simplificam o preparo dos doces", resume a historiadora Débora Oliveira, autora do livro ‘Dos cadernos de receitas às receitas de latinha: indústria e tradição culinária no Brasil’.

Esse fenômeno é percebido, sobretudo, no período pós-guerra, respondendo a três movimentos fortes: a mudança no estilo de vida do rural para o urbano, a formação de uma classe média urbana e a oferta de alimentos industrializados – o leite condensado entre eles. O que levava muitas gemas, por exemplo, poderia ser substituído por um ingrediente que simplificava o preparo. 

"Nos livros anteriores à década de 1930, tinham mais de 30 receitas de pudim: de mandioca, de batata doce, com formatos e texturas muito diversos do que a gente entende hoje como pudim", conta a historiadora. Hoje, quatro ou cinco receitas principais de pudim têm a mesma base: uma lata de leite condensado, duas ou três vezes a medida de leite e três ovos. "Essas mudanças na cozinha vieram com o leite condensado, a panela de pressão e o fogão à gás. Tudo isso acelera o preparo: o doce que era feito por horas vai ganhando notas de agilidade", pontua.

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Fruta, açúcar, água e fogo

‘Com açúcar, com afeto/ fiz seu doce predileto’, canta Chico Buarque. E é assim que trabalha a mineira Mazé Lima, que descobriu nos doces mais do que uma fonte de renda, mas uma maneira de, também, transmitir afeto. “O doce é algo que a gente traz na alma da gente, é algo de memória, de amor, de carinho”, diz.

Sua produção segue a tríade clássica: fruta, açúcar e água. “Um doce bom, um doce de verdade, não precisa de muitos ingredientes. Ele precisa conservar o sabor da fruta”, opina. Para ela, a doçaria representa, ainda, muito de sua ancestralidade, celebrada na maneira tradicional de preparo. “Minha bisavó fazia doces cristalizados. É algo muito maior que a gente, é algo muito antigo e que a gente pode resgatar. Sempre tem uma história por trás”, afirma. 

A doceira Mazé Lima Foto: Divulgação

Percebe, além disso, que existe um movimento de busca por processos, ingredientes e produtos menos industrializados. “Tem tido uma tendência de as pessoas procurarem produtos de origem e naturais, que na doçaria brasileira geralmente envolve a fruta”, observa Mazé.

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A antiga fórmula secreta ainda é seguida à risca por dona Carmem, além de serem mantidos todos os processos como eram feitos por suas avós, tias e mãe. O fazer artesanal e manual são levados a sério. A laranja é ralada com um ralador preparado com uma lata de sardinha e as pêras, descascadas à mão. Para a geleia de uva, todas as cascas são retiradas, uma a uma, antes do preparo para serem adicionadas à mistura ao final, então com textura crocante.

Para a de figo, a fruta é colhida enquanto é flor, pois assim ainda não tem sementes e, após o cozimento, dá vida a uma geleia verdinha e levemente translúcida. Todas elas são feitas com pectina natural da maçã e sem adição de conservantes. A única exceção é o açúcar, que foi diminuído nas receitas para valorizar mais o sabor da fruta. ‘A minha avó, uma italiana, dizia que qualquer coisa com uma colher de açúcar era bom, com duas era melhor ainda (risos)”, relembra da maneira como aprendeu em casa.

A confeiteira e escritora Joyce Galvão pondera que nem sempre os processos podem ser mantidos, especialmente por questões de logística e volume. Sendo assim, métodos e modos de preparo – e até ingredientes – precisaram ser revistos e adaptados. “Quando a gente fala de doçaria tradicional brasileira, a gente quer seguir com a tradição, se agarra ao passado e vai trazendo ela para o futuro, na medida do possível de como ela era feita”, analisa.

Por outro lado, na capital paulista, a chef Marília Zylbersztajn, à frente da confeitaria que leva seu nome, ainda vê resistência aos doces tradicionais em restaurantes. “É raro um restaurante topar ter doces tradicionais, existem exceções, mas são restaurantes que têm a proposta de ser tradicionais, aí têm espaço. Nos outros, menos”, observa. Mas lembra que o D.O.M., restaurante estrelado do Alex Atala, tem a “grandeza da cozinha dele em conseguir incorporar receitas tradicionais a um menu muito sofisticado”.

Serviço

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Doces CarmenOnde: produtos disponíveis na Casa Santa Luzia: Alameda Lorena, 1471. (11) 3897-5000. Seg. a sáb. 7h30/20h30. 

Restaurante XapuriOnde: Rua Mandacaru, 260, Belo Horizonte (MG). Ter. a sáb. 11h/22h; dom. 11h/18h.

Mazé DocesOnde: entrega para todo o Brasil, pedidos pelo WhatsApp (37) 98816-0268 ou pelo site mazedoces.com.br/.

Confeitaria Marília ZylbersztajnOnde: R. Fradique Coutinho, 942, Vila Madalena. 4301-6003. 10h/ 17h (fecha seg.)

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