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Seu Zé Almeida, pai do Mocotó (e de toda sua família), chega aos 80 anos

Fundador do Mocotó completa 8 décadas de vida no mesmo dia em que seu restaurante da Vila Medeiros faz 45 anos - no Dia dos Pais. Para o filho, Rodrigo Oliveira, seu maior legado é a hospitalidade

Margarete;Anderson (Mocofava) e seu pai, Gercino (de vermelho);Rodrigo (Mocotó) e seu Zé Almeida (no centro);Luciano (Nação Nordestina) segurando a foto de seu pai, Gilvan;Kelson (Maria Farofa) e seu pai, Geraldo (de óculos). Foto: Nilton Fukuda/EstadãoFoto: Nilton Fukuda/Estadão

Quatrocentos quilos de mandioca são usados toda semana no Mocotó. Ainda crua, é fatiada em ritmo frenético para depois ser frita e virar chips, servidos em cumbucas no restaurante. É meio da tarde de um dia de junho e a cozinha de produção, que fica embaixo do salão, está a todo vapor. O chef Rodrigo Oliveira não está na casa. Em seu lugar, seu pai, José Almeida, vai apontando cada canto.

Funcionários vão e vêm com naturalidade, dando conta da autoridade de seu Zé sobre a repórter intrusa. Preparam torresmo, logo atrás panelas borbulham, em outra saleta um moço prepara as bolotas de pão de queijo - o volume de tudo é grande, pois todo o preparo das cinco casas do grupo sai dali.

Margarete;Anderson (Mocofava) e seu pai, Gercino (de vermelho);Rodrigo (Mocotó) e seu Zé Almeida (no centro);Luciano (Nação Nordestina) segurando a foto de seu pai, Gilvan;Kelson (Maria Farofa) e seu pai, Geraldo (de óculos). Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Seu Zé abre, então, uma nova porta e o ambiente branco e padronizado da cozinha profissional fica para trás. Sua sala particular tem clima de casa, com TV, quadros, imagens religiosas, sofá, escrivaninha, cachaças, cinzeiros cheios e álbuns de família. Naquela tarde de junho, alguns irmãos e sobrinhos entram na sala para esperar a foto que seria feita a pedido da reportagem (acima). A foto é um registro especial: seu irmão e ex-sócio Gercino, 71 anos, que voltou a morar em Pernambuco, não visitava São Paulo havia mais de ano. Infelizmente, o timing não combinou: ele acabou chegando sem ver ainda vivo seu irmão e também ex-sócio Gilvan, padrinho de Rodrigo, falecido no fim de abril aos 76 anos.

Na saleta, seu Zé começa a mostrar fotos em que está em sua fazenda em Pernambuco, ora montado a cavalo, ora no pasto. Sorri. Fala que dentro de uma semana vai voltar para seu pedaço de terra em Socorro (PE), onde geralmente fica alguns meses - neste exato momento ele está lá.

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Seu Zé Almeida passa alguns meses por ano em sua fazenda em Socorro (PE), pertinho de onde nasceu. Foto: Reprodução/Nilton Fukuda/Estadão

Ao longo da tarde, seu Zé parece se irritar apenas com a própria fala, comprometida após o primeiro AVC, sofrido há cerca de três anos, quando estava em Pernambuco (teve um segundo AVC há um ano e meio). Não fosse isso, talvez desatasse a contar causos, mas a boca não acompanha a velocidade do seu pensamento.

Os causos remontariam os 80 anos de vida que seu Zé completa no próximo dia 12 de agosto, coincidentemente o Dia dos Pais. Com a data, o Mocotó - restaurante que catapultou a Vila Medeiros, na zona norte de São Paulo, para o mundo - chega aos 45 anos. Não que a casa tenha sido aberta exatamente nesta data, no começo ainda como boteco e empório. Mas ninguém sabe ou lembra da data de fundação, e virou uma homenagem comemorar junto com o aniversário de seu Zé.

Rodrigo Oliveira e seu Zé em frente aoMocotó em 2008. Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão

Padroeiro

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É que seu Zé - mais do que ser considerado um patrimônio para a cidade e para a gastronomia, tendo iniciado o negócio hoje tocado por Rodrigo Oliveira (que já deu origem a outras casas, como Esquina Mocotó, Balaio e Café Mocotó) - é tido como patrimônio da própria família, uma espécie de oráculo e padroeiro. Terceiro mais velho de 14 filhos, sempre foi visto como o pai de todos, ainda mais depois que a maioria se mudou para São Paulo a partir do vilarejo pernambucano de Mulungu, no distrito de Sanharó. Foi lá em sua terra que ele conheceu Lourdes, sua mulher até hoje, com quem se correspondeu por carta durante 14 meses antes de casar. 

Seu Zé é definido pelos irmãos e sobrinhos como uma pessoa de pulso firme, que dava bronca em todo mundo, mas ao mesmo tempo dono de uma bondade infinita. “Esse aqui é pai, mãe, irmão de todo mundo. Deu a casa em que moro há 29 anos. Se tem alguém precisando, ele ajuda”, diz Margarete, 70 anos, conhecida como Maga, irmã e vizinha, que sempre aparece para ver o irmão. De memória valiosa, Margarete serve de enciclopédia familiar: sabe o nome de todos, quem nasceu antes de quem. Conta que, dos 14 filhos de seu Alcino e dona Quitéria (que renderam 60 primos), 10 estão vivos, sendo sete irmãos moradores de São Paulo.

Carne de sol artesanal do Mocotó, feita nacasa e assada na brasa. Chega à mesa com manteiga de garrafa, alho assado, pimenta biquinho e chips de mandioca. Foto: Codo Meletti/Estadão

Na definição do próprio filho, Rodrigo, seu Zé é esse homem “de temperamento forte e perfeccionista”, mas, acima de tudo, uma pessoa com apreço pelo trabalho e por compartilhar conhecimento. “É algo que define meu pai em minhas primeiras memórias, um compromisso visceral com o trabalho. E também a ideia de dividir, de compartilhar”, exemplifica o chef sobre o que ajudou seu pai a construir o patrimônio que tem.

Pois foi ao lado de dois irmãos, Gercino e Gilvan, que Zé abriu a primeira Casa do Norte dos Irmãos Almeida, na Vila Aurora, depois de ter trabalhado com metalúrgica, malharia, feira livre e padaria. A sociedade dos irmãos durou pouco, pois em dois ou três anos eles abriram mais duas Casas do Norte e depois dividiram o patrimônio, um endereço para cada um. A Casa do Norte da Vila Aurora ficou com Gilvan; a da Vila Medeiros (que virou Mocotó), com seu Zé; e a do Mandaqui (que virou Mocofava), com Gercino.

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Seu Zé no Mocotó em 2010. Ele é descritopelo filhoRodrigo como “de temperamento forte e perfeccionista”. Foto: Werther Santana/Estadão

Cozinha nordestina

Mocotó e Mocofava mantêm até hoje funcionamento ininterrupto. Apenas a Casa do Norte de Gilvan não durou - depois ele teve padaria, mercadinho, bar, até abrir o Nação Nordestina em 2007, na Vila Maria, ao lado do filho Luciano. Antes disso, Luciano já havia trabalhado por anos no Mocotó do seu padrinho Zé.

Hoje quem toca o Nação é Luciano, que faz parte da segunda geração assim como Rodrigo no Mocotó e seu primo Anderson no Mocofava. Não que tenha sido fácil para eles assumirem os negócios dos pais ou propor qualquer mudança. Rodrigo, por exemplo, ousou fazer mudanças no Mocotó durante uma viagem de seu pai. A primeira reforma, em 2001, foi um risco que ele assumiu porque sabia que tomaria bronca do pai do mesmo jeito desde a proposição de ideias.

Livro "Mocotó - o Pai, o Filho e o Restaurante", editora Melhoramentos. Foto: Reprodução

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Momentos como esses, sobre também quando Rodrigo assumiu a cozinha do Mocotó, em 2004, estão registrados no livro que ele lançou exatamente um ano atrás, Mocotó - o Pai, o Filho e o Restaurante (Melhoramentos, R$ 110, 264 págs.), que traz também muitas receitas, como atolado de bode, dadinho de tapioca, caldo de mocotó e sorvete de rapadura. Receitas como essas são encontradas nos negócios de seus tios e primos, todos de raiz nordestina. 

Além dos primos oriundos do embrião do Mocotó, Luciano e Anderson, outros também tocam negócios gastronômicos na zona norte, como Kelson (que abriu o Maria Farofa na Vila Guilherme em 2012) e Janse (que abriu o Barnabé no Edu Chaves em 2006). Kelson é filho de Geraldo, 66 anos, o segundo irmão mais novo da família atrás apenas do caçula Pedro, que mantém o Bar do Pedro no Mandaqui.

Até montar sua própria casa do norte nos idos de 1980, Geraldo trabalhava com seu Zé. Depois de 1998, quando fechou, voltou de novo para trabalhar no Mocotó até se aposentar. Hoje, vê seu filho seguir os passos da família. “Eu não queria isso (trabalhar em restaurante) de birra, cursei administração”, conta Kelson, que fez pós-graduação em gastronomia. “Depois vi que era óbvio (seguir no ramo).”

Foto do arquivo pessoal de Seu Zé Almeida, tiradahá poucos anos em sua fazenda em Socorro, Pernambuco. Foto: Reprodução/Nilton Fukuda/Estadão

Apesar do DNA de culinária nordestina, Rodrigo defende outro como o maior legado de seu pai. “É a hospitalidade, o prazer de receber as pessoas. Isso é algo nato nele. Eu nunca vi alguém como ele acolher as pessoas e fazer elas se sentirem tão queridas”, conta o chef de 38 anos. “Está aí o grande dom dele, o gesto da hospitalidade. Que talvez não seja refinado, formal, mas é poderoso.”

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Já é noite no Mocotó quando o primo Luciano chega para a foto da reportagem, carregando debaixo do braço uma foto de seu pai recém-falecido, Gilvan. Seu Zé se aproxima, vê o irmão emoldurado e se põe a chorar. Rodrigo passa a mão em seu rosto, o beija. “Pai, pode deixar que a gente vai ter uma dessa também pendurada aqui.”

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