Superlativos interessam. Vai daí que, depois de julho, quando a vinícola Catena Zapata foi eleita a número um no prêmio de melhores vinhedos do mundo, seu restaurante tornou-se, além do mais caro, provavelmente o mais concorrido da Argentina também.
Que fique claro: no Angélica - Cocina Maestra mais cara não é a comida, ainda que não seja nada barata – o menu de 10 passos custa $ 62.500 (algo como R$ 870). Contudo, o que alça o lugar ao topo da careza é a harmonização escolhida. A apelidada de “escada ao céu”, por exemplo, soma $ 974.000 (ou mais de R$ 13.500) à conta final. Pelo menos na última semana de agosto.
Cifras assustadoras, no mais das vezes carregadas em espécie pelos brasileiros que enchem mais da metade do salão diariamente, à parte, o que esperar de uma refeição por ali? Logo de cara é ser impactado pela arquitetura entre os vinhedos de Agrelo, vilarejo no departamento de Luján de Cuyo, na província de Mendoza.
A pirâmide ao fundo, construída com pedras dos Andes, como se fosse um centro cerimonial maia, inicia o chiquetoso rolê. A visita guiada pela cave subterrânea da vinícola, com direito a pit stop na loja de vinhos e na fábrica de destilados, é brinde para quem consegue uma reserva no Angélica.
É hora de adentrar a réplica de borgo medieval. O comensal atravessa o pátio, onde uma placa conta a história de Catena Zapata, tida como a mais antiga vinícola familiar argentina e reconhecida pelo pioneirismo na produção de Malbec. Então, no edifício central, acomoda-se em um dos 40 lugares do restaurante inaugurado em fevereiro.
Dizem as boas e as más línguas que é uma aposta certeira para a versão argentina do Guia Michelin, que será lançado em novembro deste ano. Potencial, não falta. O serviço, feito por sommeliers, é um ponto forte. Sem arrogância, nem enochatices, eles explicam rótulos e pratos, aconselham estilos de harmonizações de maneira descomplicada e, o melhor, precificada.
Sim, as taças (todas Riedel e adequadas a cada estilo de vinho) são as estrelas principais à mesa, porém, elas brilhariam menos não fosse a comida (que, pasmem, pode ser repetida!) ou a aura do lugar.
Esta remete a Angélica Zapata, grande matriarca da família. Nos anos 1930, uma mulher que dirigia o próprio carro e trabalhava em tempo integral, como diretora da única escola local – daí o Maestra. Se era grande cozinheira ninguém soube dizer.
Nesse sentido, as receitas por lá não são familiares, contudo, recaem numa alma comfort graças aos pitacos dos enólogos Laura Catena e Alejandro Vigil e ao chef Iván Azar, também responsável pela cozinha da Casa Vigil, na Bodega El Enemigo.
Ao longo de dez etapas notam-se produtos da própria horta e combinações previsíveis, dessas que alentam boca, estômago e coração. É o caso do porco com maçã, que nem por isso deixa de ter personalidade. “Sou fã dessa pancetta curada, servida com demi-glace de porco, purê de maçã verde e kimchi ralado, que levanta os sabores”, assume o chef.
A carninha suculenta é realçada pela acidez. Por sorte, não ofusca o gigante Nicolás Catena Zapata 2019, um blend de Cabernet Sauvignon e Malbec dos melhores vinhedos de altitude da vinícola. Não à toa, ele já bateu bordeaux como Château Latour em degustações às cegas. Aos interessados, no Brasil ele é importado pela Mistral (R$ 1.265,76) e considerado uma raridade.
Mesmo sem querer dar muitos spoilers sobre o dispendioso lugar, é preciso mencionar o último prato salgado – até para que quem esteja interessado na vivência guarde um belo espaço no apetite. Trata-se de um churrasco completo. Ou, como Azar prefere chamar, picnic.
O banquete dentro do banquete inclui o corte do dia (que pode ser um flat iron), mil folhas de batata com pimentão assado e ovos de codorna, um pão caseiro recém assado e três molhos, dentre os quais, sim, um belo chimichurri. A ideia é montar um sanduba, ou melhor, vários, com diferentes combinações que, inequivocadamente, funcionam.
A questão é que dado um gole em um vinhaço como o Estiba Reservada 2006, projeto de investigação que começou nos anos 1980 com Cabernet Sauvignon, Malbec y Merlot de terroir excepcional, é difícil voltar a focar em comida.
A intensidade violeta da bebida parece tomar tudo o que há em volta e não resta nada além de se render a uma viagem por notas de frutas vermelhas, especiarias, madeira e tabaco. Não é de se estranhar que alguém ignore os queijos e compotas, nem a sobremesa lambuzada por dulce de leche defumado que vem na sequência – o que seria uma injustiça. Pior, o que significaria desperdiçar goles ora anisados, ora abaunilhados de Saint Félicien Semillón Doux!
Angélica – Cocina Maestra
Cobos, S/N, Luján de Cuyo, Mendoza, Argentina. Dom. a ter., das 12h às 16h; qua. a sáb., das 12h às 16h e das 19h30 às 00h. Reservas: +54 9 2615 07-6901 ou via https://angelica.meitre.com/