
A fúria de Trump chegou ao vinho
A segunda encarnação de Donald Trump à frente do governo dos EUA está deixando o mundo muito louco. E já afetou o vinho. O aumento desenfreado de taxas de importação imposto a países aliados, a pretexto de proteger a indústria local, rompe uma geopolítica praticada desde a segunda guerra. Para piorar, o tratamento de líderes políticos mundiais como vassalos ou inimigos cria uma cizânia nas relações internacionais. A diplomacia foi substituída pela lógica da lei do mais forte. O resultado imediato, neste primeiro momento, é de crescimento do sentimento antiamericano pelo planeta.
A sigla MAGA (Make America Great Again) corre o risco de se transformar em MAEA (Make America Enemy Again), numa reação à agressiva política comercial e internacional imposta pelos Estados Unidos. Pesquisas de opinião pública atestam o rebaixamento do índice de confiança do país em várias nações da comunidade europeia. Segundo a empresa de pesquisas Yougov a imagem positiva dos EUA caiu de 46% para 20% na Dinamarca, 49% para 29% na Suécia, 52% para 32% na Alemanha e 50% para 34% na França. Isso desde a posse de Trump.
No Panamá (país que Trump quer retomar o controle do canal) bandeiras dos EUA são queimadas. Numa reação bem-humorada do desejo de Trump anexar a Groelândia, um território autônomo da Dinamarca, os dinamarqueses lançaram uma peticão on-line para comprar a Califórnia. A petição, que já tem mais de 200.000 assinaturas, justifica sua proposta no site da campanha: “Alguma vez você já olhou para um mapa e pensou: 'Sabe do que a Dinamarca precisa? Mais sol, palmeiras e patins'. Bem, temos uma oportunidade única na vida de tornar esse sonho realidade – vamos comprar a Califórnia de Donald Trump!”. E arremata, parafraseando o mote de campanha do presidente: Make California Great Again.
No Canadá, aliado histórico, que compartilha uma fronteira de 8.891 quilômetros, a intenção de Trump de anexar o país, mais a adoção imediata de taxas sobre aço e alumínio, causa revolta e um sentimento anti-EUA jamais visto. O hino nacional americano foi vaiado em competições esportivas e está sendo proposto o boicote a produtos made in USA, em especial aos carros da marca Tesla de Elon Musk. Como era de se esperar, pesquisa local do instituto Angus Reid afirma que 79% dos canadenses têm uma visão negativa de Trump.
Praleleiras de vinhos americanos vazia em loja de Vancouver, Canadá, com a sugestão: "Compre canadense no lugar”
E aqui chegamos no nosso ponto. Por que diabos um texto do Guia dos Vinhos gasta tempo e quatro parágrafos com as sandices de Donald Trump? Porque a guerra comercial chegou ao vinho e outras bebidas alcoólicas. E, no mínimo, vale uma reflexão. Canadenses estão retirando das prateleiras uísques e vinhos produzidos na terra do Tio Sam (ou seria Tio Donald?) e fazendo uma campanha explícita pela troca por marcas nacionais. A União Europeia, em retaliação às tarifas de aço e alumínio impostas pelo governo Trump, resolveu taxar o Bourbon dos EUA.
A resposta de Trump por sua plataforma Truth Social, foi imediata e em seu tom característico - com destaques em caixa alta, que significam no dialeto das redes sociais um tom de voz elevado. Sinal de fúria. "Se essa tarifa não for removida imediatamente, os EUA em breve imporão uma tarifa de 200% sobre todos os VINHOS, CHAMPANHES e PRODUTOS ALCOÓLICOS VINDOS DA FRANÇA E DE OUTROS PAÍSES REPRESENTADOS PELA UE", retalhou Trump. "Isso será ótimo para os negócios de vinho e champanhe nos EUA."
O ministro do Comércio Exterior francês, Laurent Saint-Martin, foi taxativo, para manter a nomenclatura: “Não cederemos a ameaças e sempre protegeremos nossas indústrias", contra-atacou em uma mensagem no X.
Os EUA se voltam para seu umbigo enquanto o restante do planeta, perplexo, olha em volta e tenta reorientar suas parcerias comerciais. Será que nesta pendenga sobra uma champanhota mais acessível aqui para o sul maravilha? A prudência indica, porém, que nestes tempos incertos de sístoles e diástoles comerciais a agressiva política alfandegária de Trump ainda terá muitas idas e vindas. É sua forma de negociar – que ainda tem apoio interno, diga-se de passagem: America First. O problema é que não há perspectiva de acordo do tipo ganha-ganha. Trata-se de uma estratégia que só se realiza com um ganhador (os EUA) e um perdedor (o resto).
Esta algaravia comercial respinga por toda cadeia produtiva. A taxação começa pelo aço e acaba chegando, vejam só, no vinho. Se tudo não vai passar de uma ameaça dos dois lados ou então veremos de fato uma nova ordem mundial, os analistas ainda acham cedo para cravar. Ironicamente, a frase famosa do Manifesto Comunista de Karl Marx e Frederich Engels retrata um pouco os primeiros meses do governo Trump “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado”. O mundo está muito louco mesmo.
Uma política de um governo não representa necessariamente a alma de um país. Mas pode atiçar sentimentos nacionalistas nocivos como forma de reação. Tanto de quem ataca como de quem se defende. A valorização do meu gramado e a destruição do seu como única alternativa. O que é a antítese do conceito que temos do mundo do vinho. Apesar de ser um produto que traduz um lugar é também uma bebida construída pela diversidade de terroirs, cepas, estilos. O vinho tem na prova de rótulos de diferentes regiões um dos seus principais atrativos e ativos. Uma das mais belas expressões de autenticidade.
Privar o acesso de um vinho da Califórnia, ou do Oregon, por conta de um antagonismo de governos não deixa de ser uma solução que joga contra a experiência do consumidor. Uma bola neve que vai de encontro ao muro. Assim como canadenses estão refugando rótulos californianos, qual seria o resultado se os americanos passassem a trocar Bordeux e Bogonhas por produtos nacionais como deseja o presidente Trump? Corremos o risco de a indústria do vinho ser vítima de uma revolta popular com garrafas sendo dispensadas por conta de um radicalismo patriótico? E os europeus deixariam de tomar o Bourbon dos EUA? Aqui no Brasil a importação de rótulos americanos é tão irrisória que um boicote do produto por conta da taxação de nosso aço e alumínio não ia nem provocar cócegas no mercado exportador de lá. Primeiro que não ia ter adesão. Segundo que ia virar piada.
Extrapolando ainda mais esta polarização de baco, criando um cenário bem improvável. Imagine uma contenda comercial, ou mesmo territorial, do mesmo nível entre a Argentina e o Brasil. Uma rivalidade que sai dos campos de futebol para uma hostilidade mais ampla. Os consumidores brasileiros iriam cortar os rótulos argentinos do seu cardápio? Ou o sentimento "Ninguém mexe no meu Catena" ia falar mais alto?
Já vivemos polarizacão parecida no Brasil, mas a nível paroquial. No período de disputa presidencial de 2022, eleitores dos dois lados da disputa, bolsonaristas e apoiadores de Lula, chegaram a boicotar produtos, serviços, restaurantes e empresas que declararam apoio a um ou outro candidato. Não me lembro de esta refrega ter chegado com muita veemência aos produtores de vinho nacional, até porque a maioria apoiava a reeleição de Bolsonaro, o que deixaria o consumidor contrário a esta posição sem opção de rótulo brasileiro. Melhor assim, a disputa eleitoral não contaminou o consumo. O que não deixa de ser um sinal de maturidade do apreciador dos vinhos nacionais: separar o engaço da uva.
A frase atribuída, mas não comprovada, ao dramaturgo grego Ésquilo “A primeira vítima da guerra é a verdade”, continua válida. No caso de uma guerra comercial sem freios, no entanto, a primeira vítima é o consumidor. É ele quem vai pagar no final do dia os acréscimos cobrados pelas novas alíquotas mundiais, é ele que vai ter de substituir os produtos de sua preferência. E, no limite, vai alimentar uma guerra que não é sua. Perdem os produtores também, é verdade, mas eles encontram outro mercado para seu produto.