Quando dois mais dois são cinco
Quem acompanha este Guia dos Vinhos já notou que para cada garrafa avaliada aqui sugerimos uma ocasião de consumo. Ao leitor ainda mais atento talvez também não tenha passado despercebido que em algo como sete de cada dez vezes essa ocasião é uma comida, uma refeição, algum tipo de culinária ou uma experiência gastronômica. Isso não acontece por acaso: mais do que qualquer outra, o vinho é uma bebida que nasceu para estar à mesa.
Simplesmente ter uma boa taça para acompanhar um prato já é ótimo – e você não precisa complicar mais do que isso se não quiser. A mágica realmente acontece, contudo, quando o vinho realça e melhora a comida e vice-versa e quando ambos juntos criam novas sensações e uma experiência superior àquela que poderiam proporcionar separadamente.
É o famoso 2+2 = 5. São esses pequenos milagres gustativos que os enófilos e sommeliers chamam de “harmonização”.
Alguns acham que isso é frescura – e em determinadas situações pode até ser mesmo -, mas repare bem: em algum grau o conceito de combinar bebidas e comidas é uma realidade do dia-a-dia, só que nem nos damos muito conta disso. Ninguém toma café preto no meio de uma refeição para acompanhar um prato de frutos do mar ou uma massa, por exemplo. Mas café com um bolo de fubá quentinho... que carinho nas papilas e na alma. Da mesma forma, muitos gostam de uma caipirinha com toda a acidez do limão para fazer dobradinha com a gordurosa feijoada de sábado, o que tem total sentido. E assim por diante.
Esse exercício de combinação pode ser elevado à categoria de arte em se tratando de vinhos (e não apenas de vinhos). Ou pode ser bem básico, só tomando cuidado para não fazer com que a comida e a bebida se estranhem demais gerando uma experiência esquisita-ruim (pense num peixinho grelhado com um syrah super extraído com 15% de álcool e dois anos de barrica nova; ou num quindim com toneladas de açúcar acompanhando um refinado pinot noir da Borgonha que estava guardado para uma ocasião especial... você pode até fazer isso, mas no primeiro caso não sentirá o sabor da comida e no segundo não perceberá a bebida, sendo portanto um desperdício).
Até onde levar a prática da harmonização vai do interesse de cada um. Há quem adore a brincadeira e fique buscando as mais incríveis combinações, quase como um desafio intelectual. Há quem só faça o básico do básico para evitar algo bizarro sem prestar muita atenção além disso. E tudo bem.
O primeiro mandamento, portanto, é o interesse ou curiosidade enogastronômica de cada um. O segundo mandamento é a ocasião.
Para acompanhar um churrasco com velhos amigos ou uma pizza qualquer de domingo provavelmente não vale a pena quebrar a cabeça demais procurando o melhor “match” do mundo. O bom senso manda escolher uma garrafa simples e ser feliz. Sobretudo se ninguém mais em volta estiver na “vibe” enológica. Já num restaurante especial com uma culinária caprichada pode ser muito bacana procurar os rótulos certos com esmero e atenção.
Se Massa, salmão e vinho branco: 2 + 2 = 5
Sete regras da harmonização
Para quem está começando sua caminhada por essa instigante estrada da harmonização de vinho e comida, seguem algumas regras básicas que podem ajudar a guiar seus passos:
1 - Prefira vinhos e pratos de intensidade parecida. Comidas substanciosas pedem bebidas encorpadas, enquanto pratos delicados pedem vinhos leves. Um não deve se sobrepor ao outro para que o gosto dos dois seja percebido. Isso já é um bom começo. O passo seguinte consiste em procurar aromas e sabores que se complementem e enriqueçam a experiência enogastronômica.
2 – É comum que a culinária de um país ou região combine com os vinhos da mesma localidade. Pense numa massa com um Chianti (Toscana) ou num churrasco com malbec argentino ou tannat uruguaio.
3 - Se a refeição tiver vários pratos e vários vinhos, geralmente segue-se uma ordem: começar com espumantes de aperitivo, depois brancos leves, brancos encorpados, tintos leves e por fim os tintos encorpados. Na sobremesa, vinhos doces não-fortificados antes de fortificados como Porto. Provavelmente você não terá toda essa variedade aqui descrita, mas siga essa ordem só pulando o que não estiver sendo servido. Nada está escrito em pedra e dá para alterar algumas coisas – por exemplo abrir os trabalhos com um branco levinho e seco e depois escolher um espumante muito estruturado para acompanhar a comida.
4 - O mais comum é fazer harmonização por similaridade: um vinho com algum açúcar residual como certos rieslings da Alemanha ou Alsácia para pratos agridoces, um vinho com aromas de terra molhada e bosque com cogumelos, um syrah com toques de pimenta e especiarias com pratos condimentados, um vinho doce com sobremesa etc.
5 - Existe também harmonização por contraste, que funciona mais ou menos como o nosso Romeu e Julieta (queijo branco salgado com goiabada). Experimente um queijo azul, tipo gorgonzola, com um vinho doce de colheita tardia ou um queijo português da Serra da Estrela com vinho do Porto, por exemplo.
6 - Comidas gordurosas pedem taninos e acidez elevada. Sobretudo na questão dos taninos, além de a comida melhorar, o vinho tânico também se torna mais prazeroso quando bebido junto com o prato adequado.
7 - É recomendado começar pelo básico, mas não se prenda apenas a isso. Experimente, faça as suas descobertas. As possibilidades de harmonizações são infinitas. Celebre e compartilhe seus achados, mas também reconheça quando não deu certo.