Três vinhos e uma última palavra sobre o Dry January

Três vinhos e uma última palavra sobre o Dry January

Publicado por: Ricardo Cesar Publicado: 12/01/2025 19:50 Visitas: 73 Comentários: 0

A essa altura você não aguenta mais ouvir sobre Janeiro Seco. Eu sei. Mas o tema ainda domina as conversas e me senti compelido a resumir o que acho desse movimento. Alguém precisa amarrar tanta informação e opinião solta por aí. Tentarei. Melhor começar do começo. Meu mais recente contato com o assunto começou assim:

20 de dezembro de 2024 – Querido diário, coisas sobre “Dry January” – Janeiro Seco, em português, mas parece que preferem em inglês mesmo, tipo Black Friday - pipocaram nas minhas redes sociais. Lembrei desse movimento que surgiu na Inglaterra propondo que as pessoas se abstenham de álcool ao longo de todo o primeiro mês do ano, fazendo uma espécie de super detox pós-festividades. Isso tá pior que o mercado financeiro, já anteciparam a tendência. Interessante, mas preciso pensar nos preparativos para o Natal. Abro um Delgado Zuleta Manzanilla La Goya – que indico como vinho de meditação para qualquer momento – e vou anotando a lista de compras que tenho de fazer para a ceia do dia 24.

26 de dezembro de 2024 – Querido diário, de novo menções ao tal Dry January nas redes. Agora que estou naquele hiato entre um Natal regado a bons vinhos e um Réveillon que tampouco vislumbra-se seco - e tendo ganhado alguns quilos com as infinitas confraternizações de dezembro -, a ideia me pareceu fazer mais sentido. Contudo, o dever me chama: preciso separar os espumantes que levarei para a virada do ano na praia. Uma tarefa tão importante vai melhor se acompanhada de um refrescante Cono Sur Single Vineyard Riesling Block 23 “Rulos del Alto” 2021opção certeira.

02 de janeiro de 2025 – Querido diário, seria impressão minha ou estão todos monotemáticos sobre Dry January? Só se fala nisso. Nas conversas com amigos, no Zap, nas redes, nas reportagens. Mas não reclamo. Após uma festa de Ano Novo que foi um dilúvio de vinhos e espumantes o conceito me soa como uma espécie de Arca de Noé que veio me resgatar desse rio etílico sem margem à vista. Os efeitos do que possivelmente foi uma virose contraída na praia amplificam meus sentimentos. A ideia de Janeiro Seco hoje me parece ótima. Na verdade excelente. Abro um Gatorade enquanto arrumo as malas no hotel para voltar pra casa.

03 de janeiro de 2025 – Querido diário, vejo as notícias de que as bebidas alcóolicas nos Estados Unidos podem ser obrigadas a trazer contra-rótulos alertando para o risco de câncer. Há pelo menos sete tipos dessa doença que estão ligados ao consumo de álcool. Não há dose ou quantidade segura. Leio também outras duas matérias dizendo que as novas gerações estão bebendo cada vez menos. O consumo de vinho tinto na França caiu 80% desde o pós-guerra; e o de vinho tinto em particular desabou 90% desde os anos 1970. Na Califórnia os agricultores estão deixando uvas morrerem no pé por falta de demanda. Essa doeu, até engasguei com o meu suco detox. Sinto-me um dinossauro.

04 de janeiro de 2025 – Querido diário, hoje faz um lindo sábado de verão. Por onde ando os bares e restaurantes estão cheios de gente conversando, rindo e bebendo. Já fiz esporte. Saladinha e sucos naturais sem açúcar não faltaram no meu cardápio. Na piscina do clube há quase um congestionamento entre os garçons passando com cervejas geladas, espumante, caipirinhas e Aperol. Esse Dry January é uma tarefa árdua e parece que nem todo mundo aderiu, afinal. Mas a vida é feita de provações. Peço uma água de coco e procuro alguma coisa sobre os estoicos para ler.

05 de janeiro de 2025 – Querido diário, está um radiante domingo de sol. O primeiro pensamento do dia foi fazer esporte. Fiz. Comecei bem. Adivinhem qual foi o segundo pensamento? Que acabou também sendo o terceiro, o quarto, o quinto... Ocorre-me que essa nossa síndrome de colonizados importa qualquer coisa de fora (e nem traduz os termos para nosso idioma). Quem disse que tudo que inventam no hemisfério norte faz sentido aqui? Imagine se os ingleses, americanos e europeus adotariam a prática de ficar um mês abstêmio justamente durante o auge do verão deles caso os brasileiros tivessem inventado o Dry August ou algo parecido. Acho que os algoritmos já limariam isso direto. Nem apareceria nas redes sociais por lá. Seria solenemente ignorado. Pode ser que esse pensamento tenha sido soprado ao meu ouvido pelo diabinho pousado no ombro, mas o danado é convincente... e o anjinho no outro ombro já está esgotado após dias de luta e tirou um cochilo. Abri um ótimo Freixenet Cuvée DS 2017que indico sem ressalvas para quem quer enterrar o Janeiro Seco (brincadeira, aguente firme aí irmão) e saboreei cada gole na tarde ensolarada. O bom é que ainda sobrou para comemorar quando a Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de noite. Às vezes eu invejo meu timing, para usar um termo de inglês que gostam tanto.

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Brincadeiras à parte - e com variações de resistência e número de dias a seco -, esse percurso acima se passa com muita gente que embarca no Dry January. Muitos chegam até o fim, outros sucumbem pelo caminho e há até aqueles que gostam tanto da experiência que ali começa a transformação para uma vida inteiramente sem álcool. Que aliás é também um dos pontos do Janeiro Seco: abrir os olhos para como é possível viver muito melhor sem consumir bebidas alcoólicas.

 

Ao longo desse processo, fui me informando e formando opinião sobre o tema. O que eu acho que acho se resume ao seguinte:

  • O Dry January já “pegou”. O movimento está em linha com os anseios atuais de comportamento – sobretudo dos mais jovens - e a tendência é de adesão crescente em muitas partes do mundo.

  • Não dá para negar a Ciência, essa com C maiúsculo, quando ela traz alguma informação que te desagrada. As pesquisas atuais mais sérias mostram que álcool é uma substância nociva à saúde mesmo em quantidades pequenas. Aceitemos. Eu aceito. Ponto. Então o Dry January é algo saudável.

  • Posto isso, muita gente adora vinhos – certamente os leitores deste Guia entre elas – e encontra enorme prazer sensorial em seus aromas e sabores; prazer intelectual na cultura e na história por trás dessa bebida milenar; e, falemos a verdade, prazer também na leve embriaguez e na socialização especial que algumas taças proporcionam. Para esse grupo, talvez uma vida abstêmia não esteja nos planos.

  • Se você não está disposto a abrir mão de bebidas alcóolicas, mas ainda assim se preocupa com a saúde, a palavra-chave me parece ser “gerenciar”. Beber menos, mas com mais qualidade e encaixar isso dentro de um estilo de vida saudável. Mais fácil falar do que fazer, mas tá aí uma boa resolução para 2025.

  • Sim, as pesquisas mostram que “não existe dose segura”, mas também evidenciam que quanto menor a quantidade e a frequência, menor também a chance de algum problema relacionado ao consumo de álcool. Daí é uma decisão de cada um. Muita coisa na vida traz algum risco e mesmo assim optamos por fazer ocasionalmente se considerarmos que esse potencial de dano está suficientemente baixo e o benefício é alto (ou mandamos às favas e fazemos sempre mesmo... é o livre arbítrio, mesmo que não seja prudente).

  • Se você não vai parar completamente de beber vinho – ou quaisquer outras bebidas alcoólicas -, então é recomendado que encontre a sua maneira de gerenciar. Passar janeiro inteiro a seco é uma maneira, sem dúvida. Passar maio, agosto, setembro ou qualquer outro mês seria outra. Por que não um Dry November, daí você já faz o detox preventivo? Reduzir a frequência e a quantidade sempre, sem decretar nenhum mês inteiramente abstêmio, também é uma possibilidade. Nenhuma delas é excludente. Encontre a que funciona melhor para você.

  • Não sou especialista, mas pelo que li a respeito parece-me que os indicadores de enzimas ruins no fígado de quem abusa regularmente de álcool tipicamente começam a baixar por volta de seis semanas sem nenhum consumo. E que os maiores benefícios demoram alguns meses para chegar. Talvez o Dry January não salve a sua vida. Talvez seja melhor maneirar sempre do que exagerar numa época e zerar na seguinte. Em todo o caso, certamente é saudável ficar um mês sem ingerir álcool.

  • No mundo ideal – mundo ideal dos que amam vinho, bem entendido – acho que a melhor fórmula seria encontrar um certo equilíbrio constante ao invés de cometer excessos e depois fechar completamente a torneira. Mas eis justamente uma das razões do sucesso do Dry January: equilíbrio é um negócio dificílimo para a maioria das pessoas. É mais fácil partir para o tudo ou nada.

  • As pesquisas que apontam o álcool como nocivo à saúde são sérias. Mas – tem sempre um mas – sei também que se criam “ondas” em cima de achados científicos porque são extremamente midiáticos. As coisas são amplificadas e ganham uma dimensão alarmista. Não quer dizer que estejam erradas – nesse caso não parecem estar -, mas vira um histerismo simplista, na qual a parcimônia, o contexto e as nuances são as primeiras vítimas.

  • Sou velho o bastante para ter lido por anos que ovo faz um mal terrível (colesterol etc.), apenas para depois assistir ao triunfal resgate desse alimento que se transformou na comida mais saudável do mundo, dividindo com o abacate, com a chia e com o brócolis o pódio mais alto do planeta fitness. Já vi que café faz mal, depois que faz bem. E por aí vai (aliás, uma taça de vinho por dia já foi indicado pela Ciência como um hábito recomendável. Bons tempos. Por que as coisas não param de piorar?).

  • Não creio que esse revisionismo acontecerá com o álcool, mas acho que as coisas serão vistas dentro de uma perspectiva mais geral - “holística”, se quiser - e ponderada. Se você tiver um padrão de vida saudável não serão algumas taças ocasionais que irão te enterrar. Pelo menos torço por isso. Em todo caso, sei também que aqui estamos falando dentro de um universo restrito de amantes de vinho e da boa mesa. Fora dessa bolha – e às vezes até nela – o abuso de álcool causa muitos danos, acidentes, mortes, doenças e arruína vidas. Então, saindo do quadradinho e ampliando a visão, se for para errar, melhor que seja para o excesso de cautela nesses casos.

 

Lembro de uma sensacional história em quadrinhos que li quando criança – chamava-se Tio Patinhas e a Revolta Alimentar. Já adulto descobri que o original é em italiano Zio Paperone e La Rivolta Alimentare (tinha que ser da Itália). Na história, um artigo mostrando que os produtos alimentícios vendidos pelas empresas do Tio Patinhas faziam mal à saúde foi explorado por seu arquirrival Patacôncio para amplificar a questão até o nível de histerismo. Toda a população passa então a comer apenas verduras e vegetais, 24 x 7. Até que o Tio Patinhas, quase falindo, dá uma tacada de mestre: faz um pronunciamento na TV bem na hora do jantar - não eram ainda tempos de internet – prezando hipocritamente a alimentação vegetariana, mas dizendo que infelizmente ele era um velho fraco e ultrapassado que não conseguia segui-la. Só que esse discurso acontecia enquanto o pato trilionário estava sentado à mesa deleitando-se com um banquete exuberante com tudo de mais delicioso que a população não consumia há semanas. A cada garfada transmitida pela TV as pessoas salivavam. Até que num grande estouro após tanta vontade reprimida, a cidade inteira sai às ruas e invade os mercados em busca de macarronadas e bifes. Tio Patinhas vence. Fim.

Tags: Guia dos Vinhos, Ricardo Cesar, Janeiro Seco, Dry January

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