A hora e a vez dos brancos de Portugal
No princípio foram os vinhos do Porto. A maior parte do mundo considerou, por décadas a fio, que a contribuição de Portugal para encher as taças nas boas mesas se limitava à bebida fortificada e doce dessa região a noroeste do país. Claro, os portugueses sabiam desde sempre que não era só isso e também valorizavam os seus tintos – um apreço que nós, brasileiros, herdamos em alguma medida devido aos laços históricos entre as duas nações. Nos últimos 20 ou 30 anos, contudo, o reconhecimento da qualidade dos tintos não-fortificados da “terrinha” disseminou-se internacionalmente. Puxado por investimentos em marketing e pela modernização da produção, esses rótulos passaram a popular cartas de restaurantes, prateleiras de empórios e adegas de enófilos em todos os continentes.
Mas e os brancos? Bem, assim como acontece com espumantes, há muito tempo encontram-se bons exemplares lusitanos. Só que eram achados pontuais. A fama de Portugal nessa categoria estava até outro dia ligada ao Vinho Verde simples e barato, produzido sem muito esmero – geralmente uma bebida leve, com algum açúcar residual e um pouco frisante, com aquelas esparsas bolinhas, ou “agulhinhas”, que pinicam a língua.
Ainda pensa assim? Pode rever seus conceitos – e abrir um espaço na adega ou na geladeira. Se há uma tendência que despontou da maratona de degustação de quase 600 garrafas que levou à produção do Guia dos Vinhos 2023-2024 é a qualidade que os vinhos brancos portugueses alcançaram.
A gente confia no nosso nariz, mas... é sempre reconfortante saber que não se está sozinho. Em seu artigo de despedida na Wine Advocate – a influente publicação criada por Robert Parker (veja recomendação de livro abaixo) -, o crítico Mark Squires, que cobria Portugal desde 2004 e agora está de saída, apontou nove tendências que estão moldando a produção local. Adivinhe: a primeira é justamente a ascensão dos brancos.
“Portugal estava basicamente posicionado como um território de vinho tinto quando eu comecei”, ele escreve. “Agora há mais brancos notáveis. Seja em relação às melhorias em áreas tradicionais de brancos (como Vinho Verde) ou na evolução de lugares como o Douro, os brancos se tornaram impressionantes em muitas partes do país”.
O texto foi veiculado no final de junho. Poucas semanas antes, Jane MacQuitty, que desde a década de 80 é a crítica de vinhos do jornal britânico Times, publicou uma coluna com o título “Por que os vinhos brancos de Portugal são o gosto do verão”. Jane afirma que os brancos portugueses são “a nova moda” e que podem apresentar “acidez, sabores originais e uma maravilhosa mineralidade.”
Bem, você já entendeu o ponto.
O fato é que Portugal tem uma enorme variedade de uvas autóctones – aquelas que são nativas de lá, às vezes com nomes bem peculiares, como arinto, antão vaz, encruzado, bical, loureiro, malvasia, fernão pires, rabigato, sercial ou verdelho, para ficar apenas em algumas mais disseminadas. Ninguém precisa decorar todas, mas pense que para cada uma delas há um novo universo de sabores e aromas a serem descobertos.
Além desse tesouro enológico, existem outros fatores que jogam a favor dos brancos portugueses. Os solos de granito, os vinhedos em montanhas e a influência marítima, por exemplo, são características de algumas áreas produtoras de Portugal e contribuem para uma acidez correta e para a tal “mineralidade” tão apreciada.
Para os consumidores brasileiros essa é uma notícia especialmente boa, já que nosso mercado é bem abastecido de produtores lusitanos – e com opções para todos os bolsos.
Vamos aos vinhos, então.
Entre os rótulos mais em conta avaliados no Guia dos Vinhos, destacou-se o Quinta do Ameal Bico Amarelo 2022, com 90 pontos e preço indicado de R$ 80 – terceiro colocado no ranking “Dez Mais” de brancos com preços até no máximo R$ 100. Trata-se de um Vinho Verde leve e refrescante, mas feito em estilo contemporâneo e caprichado, com aromas de maçã e flores brancas – uma ótima pedida para o calor. Portugal ainda conta com mais dois representantes – o Sogrape Gazela Branco e o Pêra-Grave Branco 2021 – entre os dez melhores brancos do Guia nessa faixa de preço.
Mas é ao subir um degrau, indo para o patamar entre R$ 101 e R$ 200, que os brancos portugueses deram uma lavada. Entre os dez melhores dessa categoria, nada menos do que cinco são de Portugal, incluindo os três primeiros colocados. Um domínio tão incontestável quanto surpreendente.
O campeão foi o Casa da Passarella A Descoberta Colheita 2021 (93 pontos, R$ 164). Proveniente do Dão – região que tem na elegância e muitas vezes na longevidade as suas marcas, tanto para brancos como tintos -, esse vinho esbanja classe. Os aromas remetem a pêssego, nectarina e flores secas. Na boca casa untuosidade – aquela leve oleosidade que dá volume - com acidez na medida. É um vinho harmonioso, que não coloca um pé fora do lugar. Faz tudo certo.
A segunda posição ficou com o Aldeias de Juromenha Regional Alentejo 2019 (92 pontos, R$ 107), que está no ponto de beber. Redondo, mantém o frescor lá em cima e ainda nos brinda com uma das melhores relações qualidade/preço que encontramos.
Em terceiro, o Garrocha Mar do Inferno 2021 (92 pontos, R$ 189), um dos achados mais peculiares do Guia. Proveniente de Lisboa – região menos associada à produção vinícola, mas que está em alta -, vem naquela garrafa azul de formato fino e cumprido que no passado marcou uma invasão de vinhos alemães de qualidade pra lá de duvidosa no Brasil. Se você é um bebedor com mais litragem e alguma memória, talvez a simples visão dessa embalagem cause arrepios. Aqui, porém, a qualidade do líquido é bem outra: extremamente seco e mineral, tem uma acidez tão elétrica que quase dá choque na língua. O próximo gole vem por reflexo. Quando você perceber só restará mesmo a indefectível garrafa azul – vazia – na sua frente.
Completam ainda este pódio dos melhores brancos entre R$ 101 e R$ 200 o Esporão Colheita Branco 2022 (92 pontos, R$ 125) e o Quinta do Crasto Douro Branco 2021 (91 pontos, R$ 154).
Por fim, no ranking Dez Mais de brancos entre R$ 201 e R$ 300 aparecem outros três representantes da terrinha. Na quarta posição, o Quinta do Crasto Superior Branco 2021 (93 pontos, R$ 220), da região do Douro, mostra equilíbrio entre madeira e fruta sem jamais ser pesado ou cansativo. Tem predicados para evoluir alguns anos – uma garrafa que guardei arrolhada na geladeira após tomar duas taças estava praticamente inalterada uma semana depois, o que é sempre um bom indicativo de resistência à oxidação.
O oitavo colocado nessa categoria foi o Pedra Cancela Vinha da Fidalga Encruzado 2022 (92 pontos, R$ 238), outro representante do Dão. O Casa Ferreirinha Vinha Grande Branco 2021 (91 pontos, R$ 253), do Douro, completa a brilhante participação dos brancos portugueses nessa edição do guia.
Isso sem falar de outras boas opções que não entraram no pódio, mas que merecem ser conhecidas. No total, a edição 2023-2024 do Guia recomenda 21 brancos portugueses.
Nada contra as onipresentes chardonnay e sauvignon blanc – até porque há estilos completamente diferentes com as mesmas uvas -, mas Portugal oferece algumas das melhores alternativas disponíveis para variar e se surpreender.
No princípio foram os vinhos do Porto, depois os tintos, e agora - finalmente - a hora e a vez dos brancos portugueses chegou.
Recomendo correr atrás do tempo perdido e tirar o atraso.