Carménère: o vinho que a crítica odeia e o consumidor ama
“Carménère? Não dá! Eu não consigo beber!” Quem convive com especialistas e conhecedores de vinho, como o autor destas mal traçadas, certamente já ouviu uma declaração semelhante.
A carménère (assim mesmo, cheio de acentos) está para o vinho assim como o sertanejo está para a música: os especialistas odeiam; o público adora. Assim como a rima e os acordes pobres de certas músicas deste estilo podem machucar ouvidos mais treinados aquele pimentão e herbáceos exagerados de certos carménères afugentam paladares mais sensíveis que riscam a variedade do seu caderninho.
Mas assim como a crítica musical é preconceituosa ao igualar todo um gênero musical num único tom desafinado e popularesco, os degustadores de vinho se aproximam das garrafas de carménère com os narizes no retrovisor, baseados em experiências ruins quando a uva só produzia de fato vinhos verdes, herbáceos, com taninos rabugentos, uma goiaba enjoativa e a tal da pirazina (explico depois) em excesso.
Meu nome é carménère, não me confunda!
A carménère, para o bem e para o mal do marketing do Chile, se tornou “a porta-estandarte do vinho chileno”. E talvez antes da hora. Muito contribuiu para esta fama um story telling controverso, mas muito divulgado. Tem gente que não conhece a história, então vale resumir: a variedade estava lá desde o final do século XIX, mas misturada e confundida com a merlot. Resultado: colhidas ao mesmo tempo, mas de maturação diversa, a carménère acabava dando este caráter verde ao vinho.
O responsável por desfazer esta confusão e devolver a identidade original à uva foi o ampelógrafo francês Jean-Michel Boursiquot, em novembro de 1994. Boursiquot foi participar do Congresso Sul-Americano de Viticultura e Enologia, no Chile, e desconfiou que tinha carménère ali nos vinhedos disfarçada de merlot. Testes de DNA confirmaram sua suposição. Bela história. A variedade que tinha perdido importância na sua região de origem, no Médoc, em Bordeuax, ressurgia das cinzas e se transformava em uva-símbolo da indústria vinícola chilena a partir daí.
Tem gente importante que acha que esta história – que aconteceu de fato – não expressa a verdade absoluta. Muitos produtores sabiam sim distinguir as duas variedades até por conta de suas características e tempo de maturação diversos. Alguns vinhateiros chamavam a uva de merlot chilena, para diferenciar. Um importante enólogo da Concha y Toro, um papa da vitivinicultura, certa vez me confidenciou que não acreditava muito nesta narrativa da confusão no vinhedo. Como assim não sabiam diferenciar? Mas... constam dos autos, dos registros, e virou notícia em um momento que era importante divulgar a variedade. Ficou o registro.
Pirazina = pimentão, ok?
Os primeiros rótulos que provei da carménère chilena faz tanto tempo que acho que a uva nem era grafada com tantos acentos... Foram de uma linha da Concha y Toro que fez muito sucesso no final dos anos 90: Sunrise. Era uma novidade. A gente exibia: “Olha só, a uva é a carmenere! (ainda sem saber a grafia correta!)” E aí, diante da surpresa do interlocutor, quem conhecia contava a história toda do parágrafo anterior. A pirazina (C4H4N2 na nomenclatura dos químicos), o composto que remete ao pimentão, a bem da verdade nem era, nem é, privilégio da carménère. Praticamente era encontrada em quase todos os tintos chilenos da época (ainda aparece com alguma frequência em alguns rótulos). Mas a carménère ganhou a má fama.
E como resolver isso? Marco Puyó, experiente enólogo chileno que trabalhou em várias vinícolas conhecidas (Los Vascos, San Pedro) tem uma receita simples. O problema se resolve no vinhedo: “Você deve ter muito cuidado ao plantar isso no lugar certo se quiser reduzir o caráter verde [que você ama ou odeia]”. Veja bem, ele fala em reduzir, e não eliminar de vez. Puyó aplica esta regrinha ao seu atual empreendimento, a Viña Dagaz. Do próprio Puyó, o Dagaz Granito Estate Carménère, produzido no terroir de Pumanque, em Colchagua (região com maior plantação desta uva no Chile), mostra na taça sua teoria. Provei este vinho no final de 2023. Elegante no nariz com especiarias, frutas que se confirmam em boca (vermelhas e negras sem excesso), macio, acidez na medida, final longo. Boa surpresa.
Basicamente foi isso que aconteceu. Um aprendizado de como cultivar e vinificar a uva em varietais e nos vinhos de corte. Um processo que foi aprimorado ao longo dos últimos anos e rendeu bons registros da cepa em diversas faixas de preço. O enólogo Gonzalo Bertelsen, com passagens em várias vinícolas chilenas e fora do país, e atualmente à frente da Veramontee Neyen, detalha o que aconteceu. “Vinte anos atrás a chuva era mais intensa, o vinhedo mais jovem, a colheita era realizada em maio, usava-se muita madeira e as uvas ainda precisavam ficar expostas ao sol para mitigar a pirazina.” Mas a pirazina estava lá nesta época, questionei. “Se não fosse feito isso, o vinho ficava intragável”, explicou Gonzalo. “Hoje temos um controle maior do processo para manter uma uva mais equilibrada, maior conhecimento, os vinhedos obviamente envelheceram, há uma menor incidência de chuva, a colheita é realizada antes, em abril, final de março. A Viña Koyle, por exemplo, este ano colheu no fim de fevereiro!”, comparou.
Gonzalo Bertelsen: "Hoje temos mais conhecimento da carménère”
Aqui no nosso Guia dos Vinhos, onde a faixa de preço é um critério importante, foram avaliados 20 rótulos onde a uva é protagonista ou faz parte do corte. Destaco aqui dois vinhos que receberam 91 pontos. Santa Rita Floresta Carménère 2018 (Sofisticado, com notas de fruta vermelha, como cereja, notas florais e sem o pimentão que marcam os seus pares. Elegante, fresco, com taninos acetinados. No final é longevo.) e Concha y Toro Marques de Casa Carménère 2021 (Um tinto intenso e rico. O nariz e o paladar são marcados por chocolate amargo, pimentão assado, compota de frutas vermelhas concentradas e cravo. Na boca é macio, cremoso, com a devida acidez).
Peumo, onde a carménère encontrou um lar
Se existe um lugar para chamar de seu, a carménère chilena encontrou guarida na região de Peumo, no Vale de Cachapoal. É considerado o melhor terroir para a variedade. O solo é de argila, o sol é exuberante, não chove na época da colheita e a amplitude térmica é perfeita.
Momento wikipedia: e daí que o solo é argiloso? Com este nome, obviamente é rico em argila e de seus nutrientes, tem como característica uma boa capacidade de reter água, o que mantém as videiras hidratadas quando chove menos.
Dois rótulos premium são representativos deste pedaço de terra a 100 quilômetros da capital, Santiago: Herencia, da Viña Santa Carolina, e no Carmin de Peumo, da Concha y Toro. Recomendo aos incréus apostar seus bitcons (não são produtos baratos) para fazer a provas dos noves.
Carménère & cabernet
Para quem quer se aprofundar no potencial da uva em cortes vale provar também o Neyen Espiritu de Apalta, localizado em Colchagua, mais especificamente em Apalta, como o rótulo entrega. O Neyen passou por um processo de conversão dos vinhedos para orgânicos e mais recentemente biodinâmicos. Trata-se sempre de uma mescla de carménère e cabernet sauvignon. O rótulo comemora 20 safras. Em uma vertical recente comparou três safras dos primeiros 10 anos (2003, 2005 e 2007), onde a marca registrada era de caldos de maior potência, com uso mais carregado de madeira e ainda sem a referência orgânica, e três safras dos vinhedos orgânicos (2014, 2016 e 2018), onde o estilo deu uma guinada, pendendo para p frescor. Mais poeta e menos lutador de UFC.
É didático acompanhar esta transformação na taça, já que se trata da mesma mescla de uvas, no mesmo pedaço de terra, mas com manejos de vinhedos e filosofia enológica opostas. Para minha surpresa o 2003, a primeira safra que privilegiava ainda mais a carménère (75%), teve uma evolução fantástica, estava mais que vivo, vibrante, cheio de camadas, provando que o tempo pode sim fazer bem para estes vinhos de perfil ligado a um tempo que todo mundo queria agradar o crítico Robert Parker. Dos dez anos mais recentes, o 2016 gerou alguns “Ohs” dos provadores, evidenciando a mudança de estilo do vinho: sutileza, frescor de frutas, um floral sedutor, macio e longo em boca. Aqui a porcentagem de carménère e cabernet sauvignon é de 50% para cada lado.
Importante: todos os três rótulos do andar de cima do carménère estão sempre bem pontuados nos Guias de Vinho e recebem boas críticas dos coleguinhas mundo afora.
Há ainda, não há como negar, garrafas de vinhos de grande volume que remetem aos carménères do passado, com o tal pimentão em primeiro ataque e vencendo a batalha até o final, o que de alguma forma agrada uma parcela grande dos consumidores. Assim como os sertanejos produzidos para abalar os grandes estádios com suas rimas fáceis e pegajosas, estes também têm seu público (preconceituoso, eu? Hummm, talvez).
Moral da história. Assim como há clássicos do sertanejo que são elogiados até pelo mais inflexível crítico musical, há aqueles ícones da carménère que têm reconhecimento de crítica e público e que mostram o potencial da uva no lugar correto. E ainda um batalhão de rótulos de qualidade média que atende aos melhores critérios de qualidade sem ofender o bolso e nem trincar o paladar. Vai lá conferir no nosso Guia!
Pense em mim, chore mim
Quem sabe ainda encontro aquele especialista descrito no primeiro parágrafo, que odeia carménère, com uma garrafa desta variedade aberta. Talvez escondido num canto, apreciando uma taça do vinho enquanto entoa de peito aberto, não por acaso, versos de Evidências, de Chitãozinho e Chororó:
E nessa loucura, de dizer que não te quero
Vou negando as aparências
Disfarçando as evidências
Mas pra que viver fingindo
Se eu não posso enganar meu coração?
Eu sei que te amo!
Carménère? Precisa provar para testar. Fica aqui o convite.