Você já tomou um vinho da uva maréchal foch?
O dicionário Aurélio define viagem como o ato de se deslocar de um lugar para outro, utilizando ou não um meio de transporte, e com qualquer propósito e duração. Corretíssimo, mas carece de emoção. Recorremos aos escritores então. Para a polonesa Wislawa Szyborska, prêmio Nobel de Literatura de 1996, "a viagem não é uma forma de recreação e uma forma de vida, mas a própria vida". Já nosso Machado de Assis, que raramente viajava de fato, é mais sucinto, porém não menos assertivo: “viajar é multiplicar-se”.
Volto ao tema viagem aqui neste espaço. Após percorrer nas páginas de um livro e seguir as experiências do escritor Mike Veseth em A Volta ao Mundo em 80 Vinhos, recorro a uma experiência pessoal em recente visita ao Canadá para comentar a descoberta de uma uva que jamais tive qualquer referência e de um vinho que desconhecia completamente. Não tem jeito, quando se é contaminado pelo vírus de Baco qualquer passeio vira uma desculpa para novas experiâncias, não é mesmo?
Maréchal foch: esta é a uva. Alguém aqui já topou com esta variedade impressa no rótulo? Talvez sim, aqueles leitores mais experientes. Eu fui pego de surpresa. Na verdade, fui de encontro até ela. Depois de provar alguns exemplares de rótulos canadenses de uvas europeias conhecidas, e no geral muito extraídos e com uso exagerado de madeira, fui atrás de orientação de rótulos diferentes.
Entrei numa Liquor Store em Vancouver – no Canadá, a comercialização de bebidas alcoólicas só é permitida em lojas específicas; esqueça os corredores enormes de prateleiras de vinhos em supermercados - e comentei minha decepção até ali e pedi recomendações de vinhos mais autênticos e menos carregados do país dos ursos e alces.
O atendente me sugeriu três rótulos
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um chardonnay de Okanagan Valley, British Columbia. Blue Moutain Estate Cuvée da safra de 2022, que segundo ele passava longe dos brancos superamadeirados do vizinho Estados Unidos. Um pouco decepcionante. Achei que na boca o caldo seguia esta mesma linha do que, na teoria, se opunha: encorpado, amanteigado, fruta branca madura, madeira bem destacada.
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um merlot mais natural, de uma vinícola sustentável, Lock & Worth Winery, da região de Naramata Bench, Okanagan Valley British Columbia. O Naramata Merlot, também 2022, entregava sua filosofia de pouca intervenção, pequena produção e de vinhedos únicos. Um merlot fresco, autêntico, fácil e prazeroso de beber. Ponto para o Canadá! Mas merlot eu, você e o mundo já conhecemos, né?
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e finalmente me mostrou o terceiro rótulo e perguntou: “conhece a uva maréchal foch?” Não, nunca tinha ouvido falar. “Sabe quem foi o Maréchal Foch?” Confesso que na hora não me lembrava da figura nos livros de história. Ele ficou supreso. Então foi didático: Ferdinand Foch, comandante-em-chefe das forças aliadas no fronte Oeste durante a Primeira Guerra Mundial. Prontamente fingi recuperar minha memória e consenti: “ah, claro!”. “Esta uva é proibida na Europa” ele comentou, como se fosse um trunfo. Levei a garrafa. Emandare Vineyard 2022, Maréchal Foch, Cowichan Valley, Vancouver Island BC.
E aí, antes de abrir a garrafa, que ele aconselhou beber um pouco mais resfriada que o normal, fui atrás de informações sobre a uva, o marechal e a vinícola. Thanks Google.
A maréchal foch é uma uva híbrida francesa que foi desenvolvida no Instituto Oberlin, na Alsácia, no início do século 20 por Eugène Kuhlmann. Uva híbrida é o nome que se dá para o resultado do cruzamento de duas ou mais espécies de Vitis distintas. Por exemplo: uma variedade de Vitis vinífera, como uma cabernet sauvignon, combinada com uma ou mais variedades de uvas americanas, como a Vitis labrusca.
A nova variedade ficou conhecida pelo nome do criador, Kuhlmann, até viajar para os Estados Unidos em 1946, quando foi rebatizada em homenagem ao já citado marechal. O DNA da uva é um tanto incerto, há fontes que citam que é fruto do cruzamento da vitis vinífera Goldriesling com a nativa americana Vitis riparia-rupestris. Outras incluem a uva oberlin 595 na receita. Atualmente os vinhedos com a uva estão concentrados nas regiões canadenses de Ontario, Quebec, British Columbia e Nova Escócia, além de algumas regiões dos Estados Unidos. Outra uva híbrida bastante usada no Canadá, e que guarda alguma semelhança com a maréchal foch, é a baco noir
Os descritivos encontrados desta variedade apontam para: cor púrpura profunda, escuro e robusto. Forte acidez com taninos suaves. Encorpado com aromas de frutas pretas, fumaça, baunilha e especiarias. Sabores ricos de cereja preta e outras frutas escuras. Noves fora é uma uva tintureira e de frutos negros. No vinhedo é mais resistente a pragas.
Voltando à minha experiência com a garrafa do Emandare Vineyard 2022, Maréchal Foch. Valeu a descoberta? A vinícola anuncia que a intervenção é mínima, o caldo é envelhecido em carvalho francês neutro e não há filtragem. A ficha técnica aponta para “sabores robustos de groselha preta, cereja preta, mirtilo, amora preta sutil e ameixa preta com pimenta”, minha percepção foi mais para a acidez alta que fechava todo o conjunto das frutas pretas que estavam lá. Mas... preconceito ou não algum resquício de uva do tipo Vitis labrusca (como o famoso suco de uva) é perceptível no paladar. A felicidade é a prova dos noves, afinal. E no final, preferi um merlot mais natural de Vitis vinífera do que um "marechal híbrido".
Mas valeu. Provei um produto exclusivo, diverso, construído seguindo preceitos de menor intervenção e de uma uva que não chega por aqui. “Multipliquei” meu paladar, como expressou Machado de Assis (um escritor elegante como uma Vitis vinífera), mas não fiquei “apaixonado”, como na canção de João Paulo e Daniel (um estilo, digamos, mais para Vitis labrusca).