Os vinhos da pisa a pé
Se valesse a modernidade que chegou às vinícolas no final do século passado, os lagares de pedra e de mármore deveriam ser peças de museu. Daquelas peças que contam a história de como os vinhos eram fermentados em um passado distante, quando não havia energia elétrica e nem conhecimento do poder das leveduras de transformar a uva em vinho. Mas quis o destino que os lagares sobrevivessem imponentes, principalmente nas vinícolas portuguesas localizadas na região do Douro, mas não só – há lagares famosos em outras regiões de Portugal, como o de mármore, do produtor Júlio Bastos, no Alentejo, por exemplo.
Quinta das Herédias: os lagares são o destino das melhores uvas.
E agora, em plena safra em Portugal, eles estão cheios de uva, principalmente aquelas de maior qualidade, que serão destinadas aos vinhos topo de gama das vinícolas. Tanto para o vinho do Porto como para os melhores tintos do Douro, como são chamados os vinhos não fortificados da região. A seleção das uvas indica a importância deste, digamos, tanque.
Mesmo contrariando a lógica da viticultura moderna, como controle de temperatura na fermentação e limpeza, os lagares são o destino das melhores uvas.
Uvas despejadas nos lagares serão pisadas para romper sua casca
Em geral, as uvas chegam em pequenas caixas e logo são despejadas nos lagares. Os próprios funcionários que participaram da colheita são os responsáveis por pisá-las nos lagares. No início, o trabalho é maior, já que as uvas precisam ser rompidas para liberar o seu líquido, o que é feito com a força de cada pisada. Para garantir que elas sejam espremidas em sua totalidade, o normal é os funcionários se abraçarem, formando uma fileira que anda de ponta a ponta dos lagares.
A frequência da pisa varia do estilo do vinho desenhado pelo produtor, mas em geral começam na escala de três vezes ao dia, e vão diminuindo conforme a uva vai se rompendo e o mosto começa a fermentar.
Depois, elas são prensadas e seguem para o seu destino, que pode ser uma barrica, de diversos tamanhos, novos ou usados há décadas, e até tanques de aço inox.
No passado, a pisa era acompanhada de muita música típica, cantada pelos próprios funcionários e seus familiares. Hoje, a cena apenas se repete em eventos turísticos. Talvez para manter a tradição, muitas vinícolas convidam amigos e visitantes para pisarem a uva e, neste caso, contratam grupos musicais regionais para alegrar a atividade.
São os funcionários – ou a falta deles – que trouxeram algumas mudanças nos lagares. A primeira ideia foi mecanizar a pisa, o que traz a possibilidade de realizar esta atividade em qualquer horário, além de trazer uma maior higiene à atividade – por mais que se lavem os pés e as pernas antes de entrar nos tanques, são sempre pés e pernas humanas. A mecanização também resolve a questão de falta de funcionários, um problema das vinícolas com a população rural migrando para as cidades.
Suzana Barelli, ao lado do produtor Carlos Lucas: pisando uvas
Mas as primeiras mecanizações não deram certo. Elas eram agressivas, fortes demais, rompendo não apenas as cascas das uvas, mas também quebrando as suas sementes e engaços. E, uma vez rompidos, estes componentes traziam amargor ao mosto e, consequentemente, ao vinho. Com muitos estudos, surgiram as pisas mais harmônicas, com pés mecânicos de silicone, que quase imitam a ação da pisada humana.
Várias vinícolas também optaram por colocar placas de alumínio nos lagares, garantindo o controle de fermentação. Mas, mesmo com os avanços, os lagares tradicionais continuam sendo usados. “Eles dão origem aos nossos melhores vinhos”, comenta o produtor Carlos Lucas, dono da Quinta das Herédias na região de Cima Corgo, no Douro. Não raro, provas às cegas confirmam a supremacia dos lagares, o que explica a sua utilização.