Com qual velocidade sua taça fica vazia?

Com qual velocidade sua taça fica vazia?

Publicado por: Ricardo Cesar Publicado: 30/09/2024 11:24 Visitas: 46 Comentários: 0

“Bebilidade”. O corretor ortográfico foi rápido em sublinhar esse neologismo de vermelho. Mas eis aí um termo que me parece útil, pois batiza a característica que – ainda bem – os críticos e consumidores mais aprenderam a valorizar nos vinhos recentemente: quão fácil você toma o que está em sua taça.

Sim, porque há vinhos que são complexos, exuberantes, com capacidade de guarda e dotados de muitos outros predicados que nos acostumamos a procurar em uma garrafa. Mas que quando estão na mesa de refeições mostram-se também pesados, cansativos, excessivos. É, isso acontece. E não é raro.

Quem já se aventurou em degustações com amigos enófilos talvez tenha passado pela situação descrita a seguir. Um determinado rótulo é apontado como o melhor, aquele que recebe as notas mais elevadas da maioria. Após a degustação chega a comida e os vinhos vão sendo bebidos de maneira mais despreocupada.

Mas – estranhamente - não são as taças daquele que ganhou a maior pontuação que se esvaziam primeiro. Algum outro, que teve avaliação mais modesta, parece simplesmente evaporar.   

Provavelmente esse é o que tem mais “bebilidade”.  O mais elegante.

 

Antes de seguir aqui, convém dar os créditos a quem de direito. Escutei o termo pela primeira vez durante os trabalhos para produzir a edição 2024 / 2025 deste Guia – que, sim, já está saindo do forno! Quem usou o neologismo foi a Isabelle Moreira Lima, colunista de vinhos da Folha de S. Paulo e autora da excelente newsletter “Saca essa Rolha”, que estava como convidada especialíssima de uma das rodadas de degustações que fizemos.

Procurávamos uma palavra em português para “drinkability” – que significa exatamente essa caraterística de ser fácil de beber em inglês. O diabo é que há sempre aqueles termos que funcionam perfeitamente em um idioma e que não encontram tradução à altura na maioria dos demais. A própria Isabelle não estava assim tão convencida. “Estou testando o termo”, diz, como quem quer ver se vai se acostumar com algo. Ainda soa um tanto estranho, de fato. Mas funciona, entende-se perfeitamente. E o que a gente não faz para fugir de um anglicismo, não é mesmo?  

Mas afinal: o que faz um vinho ter bebilidade? Alguns elementos são chave. A primeira indicação já pode vir na análise visual. O líquido não deve ser excessivamente extraído, daqueles retintos, escuríssimos e opacos, impenetráveis como uma noite sem lua. Ao invés disso, geralmente apresenta algum grau de translucidez na taça.

Em boca a característica essencial é a acidez e o equilíbrio entre os diversos elementos. Muita gente que está começando a beber diz que “não gosta de vinho ácido”. Talvez você se incomode com acidez em excesso ou sem estar balanceada com outros aspectos, como a fruta por exemplo, mas o déficit desse atributo torna a bebida cansativa, xoxa, sem vida. É a acidez que confere refrescância, vivacidade e que nos faz salivar e querer o próximo gole.

Por fim, o uso exagerado de barricas de carvalho, o emprego de uvas colhidas maduras demais - que remetem a compotas ou frutas assadas - e algumas outras práticas também proporcionam vinhos pesados, com sensação doce na boca, por vezes encorpados em excesso. Esses líquidos perdem a graciosidade, a leveza e o equilíbrio que são justamente os atributos da tal bebilidade.

Sabe aquela história de que toda ação gera uma reação em sentido contrário? Pois foi assim que tudo isso começou. Antigamente, num mundo sem aquecimento global e com a produção de vinhos finos concentrada na Europa, elegância e leveza não costumavam ser problemas para os produtores. O desafio em regiões frias era justamente o contrário: conseguir uma fruta madura, copiosa e com taninos aveludados.

Em contraposição a um mar de vinhos magros, austeros e tânicos, os críticos que ganharam notoriedade a partir da década de 1980 - com Robert Parker à frente - costumavam reservar suas maiores notas para os caldos frutados e exuberantes.

Fazia sentido. Até que não fez mais.

Os produtores começaram a exagerar na extração, no uso de madeira nova, no ponto de madurez para colher as uvas. Tudo em busca de notas altas de Parker e companhia. Alguns vinhos modernos que surgiram a partir dos anos 90 foram para o extremo oposto daquele que era então criticado com mais frequência e se tornaram problemáticos por estar muito na outra ponta do espectro: ficaram hiper frutados, perfumados, concentrados, pesados. Perderam toda noção de leveza e elegância. Tornaram-se difíceis de harmonizar com comida - e difíceis de beber no geral.   

Até que chegamos ao momento atual – o pêndulo da História sempre vai e volta, não é mesmo? -, em que os críticos, produtores e consumidores se deram conta desses excessos e passaram a premiar os vinhos mais frescos e leves. Veio a reação.

Hoje é fácil achar especialistas enaltecendo publicamente a “bebilidade” (veja post abaixo recente de um editor sênior do crítico James Suckling recomendando uma garrafa de Ribera del Duero porque embora os vinhos da região não sejam conhecidos por sua ‘drinkability’, esse prova o contrário).

 

É só um pequeno exemplo de um movimento que ganhou força. As uvas começaram a ser colhidas mais cedo para preservar a acidez. O uso de carvalho foi reduzido, com menos tempo de passagem nas barricas e também com a substituição de barris novos (que aportam mais gosto de madeira) por barris usados, que são mais gentis.

Se nos permitirmos uma visão um tanto utópica, quem sabe não estejamos colocando os pés – ou o nariz - numa era de ouro da vinicultura, em que muitos produtores aprenderam a unir as qualidades e os prazeres hedonistas de uma fruta exuberante e aveludada sem perder os aspectos elegantes e etéreos que garantem a “bebilidade”. Pode ser. Há sim razões para otimismo.

Por outro lado, o aquecimento global representa um desafio nesse sentido, pois torna mais difícil obter frescor nas uvas. E sempre existe o risco de o pêndulo ir novamente demais para o lado oposto – alguns vinhos de regiões quente estão sendo excessivamente “corrigidos” com ácido artificial para parecerem mais frescos e vivazes, nem sempre com bons resultados.  

A regra mais importante para quem aprecia vinhos, afinal, não mudou: busque os melhores produtores. Esses conseguiam fazer vinhos majestosos e ricos há séculos, quando a chuva, o frio e a baixa tecnologia dificultavam extrair a melhor fruta em muitas safras; e também, muitas décadas depois, encontraram a justa proporção e o senso de elegância mesmo durante o frenesi dos vinhos modernos superconcentrados dos anos 90 e 2000.

Mas talvez nunca tantos produtores de tantas partes do mundo foram tão conscientes do que é necessário para fazer vinhos ótimos – o que inclui a facilidade com que são bebidos – do que hoje em dia. Se for assim, já é um motivo mais do que suficiente para brindar. De preferência com algo bem elegante.

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