O rótulo de atenção

O rótulo de atenção

Publicado por: Beto gerosa Publicado: 07/10/2024 11:06 Visitas: 113 Comentários: 0

Esta semana foi realizada em São Paulo entre os dias 1 e 3 de outubro a ProWine, a maior feira de vinhos do Brasil, que vem se consolidando como o mais importante e diverso evento do mercado da bebida em território nacional. Seu tamanho impressiona. E cresce a cada ano. Mesmo negada minha credencial de imprensa (esta profissão em extinção), acabei descolando outro bilhete de entrada e fui lá checar e fiquei impressionado com o tamanho dos estandes, bem com o número de participantes e de público.

Foram mais de 1.400 marcas de 32 países instaladas na Expo Center Norte. Sei lá quantos rótulos. Provavelmente impossível provar todos os vinhos exibidos nos três dias em toda uma vida. A feira atraiu mais de 15.000 visitantes, profissionais do setor e empresas que buscam divulgar sua marca e comercializar seus rótulos e vinícolas que se apresentaram ao mercado a procura de um importador que abrace seus produtos. Afinal tem sempre um chinelo velho para um pé cansado. Basta encontrar o seu, não é?

No meio de tudo isso rolam algumas degustações especiais de vinhos, fóruns de temas variados e muito relacionamento (networking, diriam os entendidos em negócios). A feira gira em torno de um produto de prazer, o vinho. Mas o objetivo é mesmo o negócio (ou businnes no mesmo jargão). No meio disso tudo o povo entorna algumas – ou muitas – taças. É uma feira mais divertida, sim, do que uma de produtos ortopédicos, por exemplo. Mas no final do dia, o propósito é o mesmo.

Portugal, como sempre ocorre nestes eventos, estava em peso. Representado por associações regionais, importadores, produtores. Assim como representantes da Argentina, Chile e Uruguai, o quarteto fantástico que domina o ranking de exportação para o Brasil. Uma ausência notada foi da campeã de vendas chilena VCT-Concha y Toro.

Uma tendência que vem se firmando a cada nova edição da feira é a expressiva participação de vinhos brasileiros (spoiler - eita!: nosso Guia dos Vinhos de 2024/2025, que em breve será lançado, também teve um crescimento incrível de participação de rótulos nacionais. Aguarde!). Estavam presentes tanto grandes produtores como Salton, Miolo, Aurora e Casa Valduga como pequenos e médias vinícolas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e até da Chapada Diamantina, com a vinícola Uvva fazendo sua estreia na feira. Eu particularmente sempre reservo boa parte de meu tempo nestes eventos para provar vinhos brasileiros.

A maioria das grandes importadoras carimbaram seu passaporte na ProWine, montaram estandes grandiosos, alguns até com DJs e música ao vivo. Todos buscando atrair a atenção do público. E no meio deste mar de vinhos (nós aqui também temos os nossos jargões, ô se temos), um dos principais desafios de produtores, vinícolas, importadores é: como se diferenciar?

Você curte um malbec, por exemplo? Havia tantas opções de tintos desta uva emblemática da Argentina que a decisão sobre qual rótulo escolher deixaria qualquer cidadão de bem - ou de bens - congelado como aquele famoso meme do John Travolta, extraído de uma cena do filme Pulp Fiction, em que o personagem se vira de um lado para o outro, meio aparvalhado, sem saber que decisão tomar.  E aí introduzo, sete parágrafos depois, o tema principal desta coluna: o vinho ou rótulo de atenção.

Como atrair a atenção para um vinho?

No meio destes estandes caprichados, repletos de rótulos estrelados ou descolados, o que atraiu muita atenção do público que bordejava os corredores da ProWine era um acanhado estande, quase perdido na periferia da feira, que reunia uma multidão de celulares em punho para fotografar seu cartaz principal e seus rótulos. O motivo? Seu singelo nome: “Que se foda”. Seguido do poético complemento: “Não se assuste com o nome. Que se foda é um vinho do caralho”. Bem... desculpe os termos pra lá de explícitos. Mas como mostra a imagem abaixo, trata-se de uma transcrição literal. E nem tão original, há rótulos que apostam há algum tempo neste tipo de mensagem torta para chamar atenção, um dos mais famosos é um rosé da região de Languedoc, o "Le Vin de Merde” . Mas aqui a história do QSF se confunde com outra estratégia conhecida, do marketing de atenção.

 

O Que se foda surgiu como um projeto de um artista português, Francisco Eduardo, que teve a primeira edição de 1.000 garradas esgotada em 24 horas. Detalhe: o vinho não existia. O artista em seguida enviou uma mensagem aos potenciais compradores em que informava “Venho por este e-mail revelar-lhes que o produto que adquiriram é uma obra de arte e não um vinho.  São garrafas com teor intelectual e com uma mensagem de fé. O que está dentro das obras é um vinho Syrah de 2017 certi­ficado pela Adega da Azueira, premiado com medalha de ouro, que comprei selado. Não quero é ludibriar o adquirente e por isso frisar-lhe que o que comprou foi arte. Assim, e caso não aceite o produto enquanto arte, naturalmente que lhe devolvo o dinheiro.” Ou seja, era uma fake news, ou um fake wine, no mínimo um fake rótulo. Mais curioso ainda: ninguém desistiu da compra.

Em 2021 são lançados de fato vinhos da região do Tejo com o rótulo da empresa QSF. Aqui no Brasil o tinto que está à venda é nacional, produzido em Flores da Cunha, com as uvas merlot, shiraz e petit verdot e, como se trata de uma versão brasileira dos rótulos de Portugal, são rotulados com a gracinha meio datada: uma “versão brasileira, Herbert Richers”. Os rótulos do Tejo estarão no Brasil a partir de janeiro de 2025.

Vale tudo?

A reflexão que faço aqui não é moralista. Mas de conceito. De ética. De estratégia de comunicação. O público obviamente era atraído pelo cartaz (eu também fui, mas pelo menos com senso crítico). Em seguida provava os vinhos, que eram bebíveis, só isso; por fim os interessados eram convidados a enviar um email detalhado para negociar as garrafas para seu comércio, restaurante ou mesmo consumo próprio (vale lembrar que esta é uma feira B2B, businnes!) No curto espaço de tempo que estive ali muita gente estava realmente interessada em encomendar garrafas.

Aqui primeiro se construiu a marca, a comunicação por meio do ruído. Depois, de modo secundário, se apresentou o produto. O que poderia parecer um manifesto artístico questionando o status quo de um objeto de consumo elitizado na verdade se tornou - ou foi capturado - numa estratégia de marketing de atenção. O que nos leva a um questionamento. O que é o vinho afinal? É só isso? Vale tudo para chamar a atenção do consumidor? Estava muito claro que o vinho tinha uma importância relativa. O cartaz deve ter sido campeão de posts no Instagram.  A piada e o engajamento estavam garantidos. Terroir, blend, enólogo, história, técnicas, o esforço de extrair do vinhedo sua melhor tradução? Nada disso importava muito, mas sim o apelo fácil de venda do rótulo. A questão de como capturar a atenção do consumidor no espaço mais curto possível estava equacionada.

 É a chamada economia da atenção aplicada ao mundo do vinho da forma mais rasteira possível.  De acordo com uma pesquisa realizada pelo Statistic Brain Research Institute, o tempo médio de atenção de um adulto é de 8.25 segundos. Este é o tempo que se tem. O termo foi criado nos anos 1970 pelo economista, psicólogo e cientista político Herbert Simon. Economia da atenção é um termo que se refere à forma como as pessoas lidam com a quantidade de informações disponíveis, e à competição por atenção que se estabelece. Tudo está em concorrência com tudo. E numa feira com este volume de rótulos em exibição, nem se fale. O produto, ou pessoa, que se diferencia - não importa como - acaba capturando o que há de mais valioso na sociedade atual: o tempo das pessoas.

Toda esta história só comprova que existe público para tudo. A mensagem de se colocar como algo pseudo anti-institucional é eficiente tanto para influenciadores digitais picaretas como para produtos e até políticos (vide a disputa à prefeitura de São Paulo). A incontinência verbal alcança determinado público e eleva os algoritimos de atenção .  

E assim cria-se uma armadilha perfeita, Bino. Ao questionar estas práticas incrementa-se sua exposição e até sua irrelevante relevância: o objetivo é ser comentado. Ao mesmo tempo, ignorar o tema acaba normalizando o método. Não, o Que se foda não era apenas uma brincadeira (de mau gosto), um vinho da quinta série B, muito menos um manifesto artístico. Era estratégia de marketing em que o ruído é o método de chamar atenção. Tim Maia foi visionário e infelizmente antecipou o  mantra deste fenômeno social e digital de atenção que ganha cada vez mais espaço e adeptos: vale tudo!

 

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