Quando o vinho sai da bolha quem ganha é o mercado
O restaurante Zain, especializado em culinária árabe, convidou recentemente alguns especialistas para provar a harmonização de pratos tradicionais da casa - esfihas, coalhadas, tabule, kibe cru, michui de filé mignon - com vinhos de sua carta com rótulos para todos os bolsos. Dos 40 tintos, brancos, rosés e espumantes da carta, apenas 7 estão acima de 300 reais. Estive lá para conferir. Afinal, o DNA do Guia dos Vinhos é de rótulos na faixa de preços até 300 reais. Também é um diferencial do Guia sugestões de harmonizações com pratos de várias nacionalidades e estilos ou mesmo momentos de vida.
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Mas, acima de tudo, o evento mereceu a atenção aqui no Guia – e o texto que segue - pois ele quebra alguns paradigmas e fura algumas bolhas do setor. É um convite à reflexão. O Zain, para quem não conhece, está localizado no Tatuapé, zona leste de São Paulo. Uma região onde o vinho em restaurantes está longe de ser protagonista. A iniciativa de chamar especialistas para sair de sua zona de conforto e se descolar para fora dos restaurantes estrelados do eixo Jardins-Itaim-Pinheiros sinaliza a importância da divulgação da bebida fora do circuito, mostrando que existe um público a ser atendido e casas que fazem um trabalho de formiguinha que nem sempre estão sob holofotes da mídia.
O proprietário do estabelecimento, Cauê Fantone, cresceu no bairro e conhece seu público “A região consome mais cerveja”. A aposta de Fantone merece ser acompanhada. Afinal, o crescimento do consumo de vinho só é possível quando alcança um público fora do radar. O resultado? Segundo Fantone, a maioria dos clientes do Zain “recebeu com bons olhos a proposta e muitos se abriram para provar essa ‘nova’ combinação de vinho com a gastronomia árabe”. A iniciativa teve início no primeiro trimestre de 2024 e os rótulos mais vendidos da carta, surpresa zero, são os tintos. Nunca esquecer, trata-se de um negócio, mesmo quando há uma paixão do proprietário pela bebida. O resultado foi de crescimento até agosto, quando se estabilizou.
Michui de filet mignon disputando a companhia de dois tintos
Vinho harmoniza com coalhada e esfiha?
Vamos combinar que o desafio é duplo. Nem sempre a culinária árabe está associada à companhia de uma taça de vinho. Nós aqui no Guia discordamos. Apostamos na diversidade e temos rótulos indicados para a cozinha árabe, como por exemplo o Quinta do Carmo Dom Matinho 2020, repleto de especiarias como canela.
A harmonização proposta pelo Zain foi conduzida pela sommelière Laura Wortmann da importadora Mistral (que domina o catálogo do restaurante) e apontou boas possibilidades de parcerias. O francês La Vielle Ferme Rosé combinou bem com as entradas, em especial com o homus e o kibe cru. O Côtes-du-Rhône Reserve Blanc da Famille Perrin abraçou tanto a coalhada como uma curiosa esfiha de cebola caramelizada, assim como excepcional branco da Hungria, o Tokaji Furmint Mandolás. No time dos tintos, o português do douro Altano, e um legítimo representante da culinária regional, o libanês Château Musar Jeune Rouge, complementaram e ressaltaram os sabores do michui de filé mignon que estava no ponto exato
Comunicação viciada?
O consumo de vinho no Brasil, com algumas variações sazonais, não ultrapassa 2 litros per capita desde que eu acompanho o assunto, há mais de vinte anos. Existem incontáveis razões para o vinho não rasgar este teto de consumo: preço, impostos, cultura, história, hábito e até mesmo o receio das pessoas consumirem uma bebida alcoólica com fama de difícil e associada à classe dominante e ao esnobismo.
Esta imagem de bebida do andar de cima, arrisco eu, tem uma grande contribuição de parte da imprensa especializada - mea culpa, nossa máxima culpa -, e de profissionais do mercado que privilegiam a divulgação de rótulos caros, repercutem apenas presença de enólogos estrelados, e, com o luxuoso reforço do influencers deslumbrados das redes sociais, repercutem invariavelmente degustações em restaurantes sofisticados com harmonizações idem. Ou seja, o vinho que ganha maior atenção e divulgação é caro e fica restrito a um polígono traçado nos mapas das grandes capitais, em especial Rio de Janeiro e São Paulo, onde estão concentrados os restaurantes premiados e o PIB das cidades.
Essa estratégia de comunicação viciada, que mira rótulos mais exclusivos, reduz o público invés de ampliar. Mantém o vinho no patamar de objeto de desejo, de produto aspiracional. Afasta um consumidor médio que apenas deseja um vinho de boa qualidade para acompanhar uma comida, animar um bate papo e nem sempre (quase nunca) está disposto a ouvir descrições gustativas e olfativas fora de sua compreensão. Muitas vezes uma descrição curta e legível e a disponibilidade de boas garrafas em diferentes locais é o que basta.
Os rótulos propostaos para harmonização com comida árabe no Zain
Tudo é uma questão de equilíbrio
Mas você aí do outro lado da tela pode estar pensando: “Ah! Mas não é muita demagogia? Aposto que o autor do texto cheio de lição de moral não dispensa um Almaviva, um Barbaresco do Gaja, um Borgonha Premier Cru”. Resposta: sim, gosto muito; já fui convidado para degustações em restaurantes sofisticados com vinhos deste naipe e escrevi sobre o assunto em várias publicações. A questão não é excluir estes ícones da pauta do mundo do vinho. Até porque são rótulos que geram interesse, curiosidade e alcançaram seu Everest por suas qualidades. São objetos de desejo por mérito - e um pouco de marketing, claro.
O problema é apenas focar na realeza e esquecer dos súditos que sustentam a base da pirâmide do mercado. O problema é colocar o vinho na torre de marfim. É perpetuar a soberba e depois lamentar o baixo consumo da bebida no Brasil. É esquecer que o vinho é uma bebida que pode tanto abrilhantar um carré de cordeiro ou uma lagosta à thermidor em um restaurante dos Jardins como acompanhar um pizza de margherita, um sanduíche de mortadela. Ou mesmo uma esfiha – que aliás estava ótima - em um restaurante árabe no Tatuapé. O exemplo do Zain mostra que há espaço para todos, que devem ser mais explorados, descobertos.
Fica o convite: vamos furar mais bolhas por aí.