O diploma inglês de master of wine, marcado pelas duas letrinhas mágicas, MW, acrescidas ao final do nome, é o título mais cobiçado no mundo do vinho. Atualmente são 425 MWs, baseados em 30 países, de um título que é concedido desde 1955 pelo Instituto do Master of Wine, sediado na Inglaterra.
Em 2008, Dirceu Vianna Júnior se tornou o primeiro e, até hoje, o único brasileiro a conquistar o título, mas ele mora na Inglaterra desde 1998. Antes dele, em 2003, a argentina Marina Gayan se tornou a primeira MW nascida no continente sul-americano. Marina, no entanto, se mudou para Londres alguns anos antes para estudar para o curso. Só voltou para a Argentina recentemente, dois anos atrás.
Os exemplos acima mostram a dificuldade de conquistar este título. Atualmente 346 pessoas, de 43 países, estudam para o master, e todas sabem que a peneira é muito estreita, pela exigência de conhecimento teórico e de degustação, além do (grande) investimento financeiro.
Estes números também explicam a importância da conquista da inglesa Amanda Barnes, que em fevereiro se tornou a primeira MW a obter o título enquanto vive na América do Sul. Ela mora na Argentina e é autora do “The South America Wine Guide”, livro de referência no setor, ainda sem tradução para o português. Mais: seu trabalho de conclusão é baseado na uva criolla, trazida pelos colonizadores espanhóis para o continente e que dá origem a vinhos, digamos, mais simples.
As mulheres representam um terço do total de MW. Quando surgiu, sete décadas atrás, o IMW quase só aprovava homens. Atualmente a porcentagem de novos mestres fica ao redor de 50% entre os dois gêneros. Neste ano, dos quatro aprovados, três são mulheres. Além de Amanda, passaram Sarah Benson, da Inglaterra e Kathleen Van den Berghe MW (Bélgica). Jit Hang Jackie Ang, de Singapura, foi o representante do mundo masculino que ganhou o título.
Quando foi aprovada em 1984, a inglesa Jancis Robinson, talvez a mais conhecida MW da atualidade, se tornou a primeira profissional que não trabalhava com vinhos a entrar nesta seleta lista.
Natural de Hampshire, Amanda trabalha com vinhos desde 2009. E, aos 39 anos, diz que há, ainda, preconceito com as mulheres no setor – que ela ignora (leia entrevista a seguir). E que a indústria erra ao ignorar o papel das mulheres no mercado. “As empresas tendem a comercializar para os homens como conhecedores e simplificar seu marketing para as mulheres”, afirma em entrevista para o Paladar. Amanda, ainda, acredita que a degustação é uma habilidade aprendida, que pode ser bem executada por ambos os sexos.
Na lista de candidatos ao MW há uma brasileira, a Karene Vilela, hoje representante da vinícola portuguesa Bacalhôa no Brasil e na Inglaterra. Ela também conta dos preconceitos das mulheres que trabalham no setor, enquanto estuda com afinco para obter o título.
Entrevistas
“Às vezes, as mulheres podem ser degustadoras mais sensíveis” - Amanda Barnes

No cobiçado mundo dos master of wine, a inglesa Amanda Barnes, de 39 anos, se tornou a primeira residente da América do Sul a conquistar o título de MW. Anunciado em fevereiro, a conquista foi muito comemorada, principalmente com vinho argentino, e coloca a América do Sul, Brasil inclusive, em evidência.
Nas comemorações do Dia Internacional da Mulher, Amanda conversou com o Paladar sobre as questões de gênero no mundo do vinho. Confira.
Homens e mulheres degustam de maneira diferente?
Depende... Acho que degustar é uma habilidade aprendida. Então, qualquer homem ou mulher pode treinar seu paladar. E acredito que um tem o potencial de ser um degustador tão bom quanto o outro. Embora, naturalmente, eu ache que, devido às nossas flutuações hormonais, às vezes as mulheres podem ser degustadoras mais sensíveis. Mas habilidade e trabalho duro superam a biologia na minha opinião.
Na sua jornada no vinho, que começou em 2009, como você vê a importância das mulheres no mercado?
As mulheres são as principais compradoras de vinho. Sim, nós fazemos as compras! Então, em teoria, deveríamos ser as mais importantes no mercado, mas acho que a indústria tem uma tendência a ignorar o papel das mulheres no mercado. A indústria tende a comercializar para os homens como conhecedores e simplificar seu marketing para as mulheres. O que é um erro na minha opinião.
Na sua careira no vinho, você já enfrentou problemas por ser mulher?
Há muito preconceito em culturas machistas, como a Argentina. Principalmente em termos de ser julgado por não ter filhos, ou não ser casado. E alguns homens têm uma expectativa profissional menor das mulheres. Tudo isso eu certamente enfrentei. Mas nunca me senti envergonhada por isso - este é o problema e uma deficiência deles, não minha. Também tive muitas experiências muito positivas com homens na profissão, que me trataram e a outras mulheres também com grande respeito e igualdade.
“A importância da mulher é elevar a régua” - Karene Villela

Aos 37 anos, Karene Vilela aceitou o desafio da vinícola portuguesa Bacalhôa de cuidar dos vinhos nos mercados brasileiro e inglês. Para isso, assumiu também interromper as atividades da Portus, importadora de vinhos da sua família. A nova função, que ela assumiu este ano, deve ajudá-la no estudo para conquistar o título de MW. Na conversa a seguir, Karene conta dos seus desafios profissionais em ser uma mulher no mercado do vinho.
Na sua jornada no vinho, como você vê a importância das mulheres no mercado?
Quando eu comecei, com 20 e poucos anos, me sentia uma menina, uma aprendiz. Não sentia tanta pressão porque me considerava “café com leite” e, ao mesmo tempo, achava que não conseguiria impor respeito com o pouco que sabia. A importância da mulher no mercado de vinhos eu só aprendi depois. Percebi ao longo dos anos que precisava saber duas vezes mais do que um homem, ser duas vezes mais simpática, ter o dobro de diplomas – e quantas vezes mais você imaginar – para pertencer.
Hoje, com quase 40 anos, sinto que a importância da mulher é elevar a régua. Para pertencer, ela precisa ser mais, e, para as outras seguirem, também precisam elevar a régua. Não é à toa que dizem que, quando há uma mulher envolvida, as coisas são diferentes.
Quem me conhece sabe como sou feminista, e a minha luta é para que homens e mulheres tenham que se esforçar igualmente para pertencer – e isso ainda não acontece. Sempre há aquele homem que levanta a bandeira de que “hoje tem cota para tudo” e que “os homens estão ficando para trás porque sempre querem contratar uma mulher”. E eu pergunto: por quanto tempo foram só homens? E por quanto mais tempo ainda deveria ser assim?
Pela sua experiência, você acredita que as mulheres degustam diferentemente dos homens?
Tecnicamente, não tenho conhecimento suficiente para afirmar. Claramente, pessoas que são mais expostas a diferentes cheiros têm mais facilidade ou melhor desempenho em degustações. Historicamente, as mulheres estavam mais ligadas aos serviços domésticos, e provavelmente é daí que vem o mito de que têm um nariz mais aguçado para aromas.
Hoje, não ousaria afirmar nada disso. A excelência vem do treino e, de forma geral, os homens têm mais disponibilidade para treinar do que as mulheres. O machismo estrutural em que vivemos, mais evidente na cultura latina, reforça esse viés, atribuindo às mulheres a responsabilidade pelo cuidado com idosos, filhos e entes queridos. Consequentemente, elas têm menos tempo para treinar.
Nesse cenário, os homens levam vantagem. Mas volto a dizer: não ousaria afirmar, de forma generalizada, que existem diferenças fisiológicas. No fim do dia, tudo é culpa da cultura.
Em algum ponto da sua carreira, você já se deparou com problemas ou “saias justas” por ser uma mulher em um ambiente masculino?
Centenas de vezes. Já passou de dezenas faz tempo... Perguntas frequentes como “quem é seu chefe?”, deixando claro que uma mulher jovem como eu não poderia ser a líder naquele momento. Assédios escancarados, seja pessoalmente em feiras de vinhos ou digitalmente. Aliás, o mundo online dá voz a assediadores de forma inimaginável.
Em que etapa você está do MW?
Estou no estágio 2. Costumo dizer que o primeiro estágio é subir até a base do Everest, o dois é subir o Everest dentro do curso. E o terceiro, na teoria, é descer rolando. Ainda estou tentando chegar ao cume da montanha.