Procurar regiões mais frias para a elaboração de vinhos está no radar das vinícolas. Com as mudanças climáticas, a tendência é plantar vinhedos mais ao sul, no Hemisfério Sul, ou mais ao norte, no Hemisfério Norte. Encostas de montanhas e regiões com influências de brisas frias são outros bons destinos para as novas vinhas, tudo para que o clima, que vem ficando mais quente nas regiões tradicionais, não atrapalhe o lento amadurecimento das uvas.
O mais recente exemplo desta tendência é o projeto Otronia, do bilionário argentino Alejandro Bulgheroni (o mesmo da Bodega Garzón, no Uruguai), que chega agora ao Brasil. É o vinhedo mais austral da América do Sul, cultivado no paralelo 45’33 Sul, considerado o limite para a agricultura dar frutos. São 50 hectares de vinhedos em Chubut, na região batizada de Patagonia Extrema.
O projeto revela também o entusiasmo humano em vencer adversidades. Lá, as vinhas precisam sobreviver não apenas às baixas temperaturas, como aos ventos frios, que sopram a mais de 110 km/h. Condições tão inóspitas fazem a planta crescer mais devagar (precisam de três anos a mais do que as cultivadas em Mendoza para começar a produzir) e ter rendimento mais baixo.
“No início, pensávamos que só conseguiríamos elaborar espumantes, porque as uvas não iriam amadurecer para dar origem aos vinhos”, conta Maximo Rocca, diretor comercial do projeto. A luminosidade (o sol de põe, não raro, depois das 23 horas) garante a completa maturação da uva, e a plantação de alamos cria uma barreira natural ao vento.
As primeiras vinhas foram plantadas dez anos atrás, com consultoria de Pedro Parra, chileno especialista em terroir, e seguem a filosofia biodinâmica. A enologia é do consultor italiano Alberto Antonini. “Neste projeto, aprendi que a natureza nunca para de surpreender”, conta o italiano (veja entrevista completa abaixo).
A proposta é fermentar as uvas em tanques de concreto e amadurecer em foudres (grandes barricas de carvalho), para evitar que as barricas pequenas passem notas aromáticas ao vinho.
O projeto estreia com quatro vinhos, divididos em duas linhas: a 45 Rugientes, na versão branco e tinto, por R$ 279, e o Block 3&6 Chardonnay e o Block 1 Pinot Noir, cada um por R$ 669, importados pela World Wine. Há também um espumante, por enquanto restrito ao mercado argentino. Os preços são salgados. Rocca diz que eles refletem a dificuldade de elaborar uma bebida em condições tão difíceis e distantes – o vinhedo fica a 2 mil quilômetros de Buenos Aires.
Os vinhos têm aromas que remetem à mineralidade, com notas de frutas menos exuberantes (a linha 45 Rugientes é mais frutada e jovem), com boa textura, complexidade e bela acidez. Ou, como diz Antonini, “trazem um forte caráter do lugar em que são cultivados”. E, principalmente, exemplificam a capacidade humana de vencer as dificuldades da natureza. Outros exemplos certamente virão.
Os desafios para o enólogo na Patagonia extrema
O italiano Alberto Antonini é o enólogo de confiança do empresário Alejandro Bulgheroni. Ele está a frente de vários dos 21 projetos viníferas do argentino, em cinco países. O primeiro projeto de Antonini para Bulgueroni foi a implantação da uruguaia Bodega Garzón, vinícola que lançou no mundo do vinho este empresário que fez fortuna na indústria petrolífera. E o mais recente é o recém-lançado Otronia.
Como foi o convite para elaborar um vinho na Patagonia? É sempre um grande desafio, principalmente pensar em vinhedos numa região que não tinha uvas. O engenheiro (Bulgueroni) me disse: ‘sou um homem que passei a minha vida com grandes desafios, que estou acostumado aos riscos’. Eu aceitei e disse que gostaria de contratar um amigo, o Pedro Parra, para classificar o solo e plantar as vinhas com critérios. Ao contrário de Garzón, que começamos com muitos hectares de vinhedos, no Otronia plantamos no início 7 hectares, de chardonnay e pinot noir, com clones da Borgonha e de Champanhe. Imaginávamos que a base seriam os espumantes. Depois plantados as demais variedades, como gewurztraminer, pinot grigio e merlot.
Quais os desafios do projeto? Foram muitos. Primeiro o desafio do lugar. No início, eu ficava no único hotel da região, em uma habitação sem janelas. Depois de três anos, enfim fiquei em uma habitação com duas janelas, mas quando ligava a calefação o barulho era igual a decolagem de um Boing 747. Hoje já tem uns três ou quatro hotéis por lá. Mas sempre vou para Chubut com muito entusiasmo porque o projeto me encanta. Nas vinhas, o maior desafio é o vento, que afeta a folhagem, traz pó, dificulta o amadurecimento.
E como ele pode ser contornado? Tem desde a plantação de árvores, como a maneira de conduzir a vinha. Fizemos uma cortina de alamos, que funciona bem. Mas o vento, mesmo muito forte, é positivo, pois cria um ambiente sadio, com menos enfermidade nas vinhas. E o solo calcário é fantástico.
Qual a sua filosofia para elaborar o Otronia? É um terroir tão bom que procuro elaborar o vinho de forma pura, com uma tecnologia básica, pouco invasiva. Fermentamos em tanques em formato de ovo de concreto, que funciona bem. E não utilizamos barricas pequenas. Conforme a região, a madeira marca muito o vinho. Minha ideia é respeitar a natureza, respeitar as características do lugar, que se revela no vinho.
O que tem de único neste projeto? Na enologia, há vários mistérios que não conseguimos explicar. Isso acontece nos grandes terroirs. Em Otronia é mais forte o caráter do lugar do que o caráter varietal da uva. São vinhos muito frescos, elegantes, com notas de ervas. É difícil descrever, tem de provar.
O que você aprendeu com o projeto? No meu trabalho, sempre se aprende muito sempre. Me pagam para entregar conhecimento e eu trabalho com muitos enólogos bons. É um intercâmbio. O Otronia mostra que a natureza nunca termina de nos surpreender. Quantas coisas que não se conhece, onde nada havia sido plantado em milhões de anos. Ou lugares que foram abandonados por razões políticas ou econômicas no passado e podem agora ser retomados. Tem um mundo para se descobrir no vinho.