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Suzana Barelli

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Le Vin Filosofia

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O pioneirismo de Ntsiki Biyela, a primeira enóloga negra da África do Sul

Formada em 2003, ela conta dos preconceitos que enfrentou neste país que elabora vinhos há mais de 4 séculos

Ntsiki Biyela se tornou a primeira enóloga negra da África do Sul Foto: Vonani Ngomana

É no mínimo inusitado a maneira como Ntsiki Biyela se tornou a primeira enóloga negra da África do Sul. Ainda mais quando ela conta que tomou a sua primeira taça de vinho já como aluna da Universidade de Stellenboch, e não gostou nadinha da bebida, que acabou virando sua paixão e profissão.

Boa aluna no vilarejo de KwaZulu-Natal, a história de Ntsiki no mundo do vinho começa no final dos anos 1990, quando foi convencida por um professor a pleitear uma bolsa de estudos para a universidade. Acabou sendo selecionada para o curso de enologia, em Stellenbosch, no coração das vinícolas do país, mas distante de seu vilarejo. Além disso: na época ela não falava afrikaans, uma das 11 línguas oficiais da África do Sul e o idioma da universidade, e seus colegas de classe perguntavam o que ela estava fazendo ali, como conta na entrevista a seguir. Mas ela, filha de uma empregada doméstica e criada pela avó, sabia que a educação formal era a única maneira de mudar o seu futuro.

Após anos de estudo,Ntsiki Biyela decidiu lançar seu próprio vinho Foto: Vonani Ngomana

Da universidade – ela se graduou em 2003, mais de quatro séculos depois de a África do Sul começar a elaborar vinhos –, Ntsiki partiu para uma carreira de destaque. Fez estágios em diversos países, trabalhou em parceria com a enóloga norte-americana Helen Kiplinger, desenvolvendo vinhos nos Estados Unidos; foi a principal enóloga da vinícola boutique Stellekaya; e ganhou vários prêmios até decidir lançar os seus próprios vinhos. Batizado de Aslina Wines, nome em homenagem a sua avó, segue a filosofia da enóloga de menor intervenção em sua elaboração, o que significa pouca extração da uva durante a fermentação e a utilização cuidadosa das barricas de carvalho. Atualmente, o portfolio conta com cinco vinhos e um espumante. Eles são elaborados com uvas que Ntsiki compra de produtores parceiros, e vinificados em uma adega alugada.

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Como você chegou ao mundo dos vinhos? Eu ganhei uma bolsa de estudos para aprender enologia. Não foi exatamente uma opção do que eu queria fazer, mas aproveitei a oportunidade. Fiquei feliz de poder estudar, mesmo sem saber de vinhos na época. Me graduei em 2003 e me tornei a primeira enóloga negra da África do Sul.

Quais as maiores dificuldades que você enfrentou na universidade como profissional negra?

No meu vilarejo, a gente não fala afrikaans, que até recentemente era a única língua oficial da faculdade. Além disso, a cultura do vinho que se aprende na faculdade era totalmente diferente da vila de onde eu vim. A cultura, o meio-ambiente, todas as complexidades, as descrições dos aromas, tudo era muito diferente do que eu conhecia até então. Mas mesmo sem entender direito o curso, eu decidi que iria aprender. Consegui um estágio no setor e estudei muito.

Os obstáculos continuam, principalmente para os estudantes negros?

Os obstáculos sempre estarão lá para a população negra, mas às vezes eles estão escondidos. Um exemplo é que apenas recentemente a universidade de Stellebosch começou a se preocupar se os alunos falavam a língua da universidade. Sobre os enólogos negros, pessoas negras continuam a lutar muito por seu espaço, tanto do ponto de vista do consumidor como da produção de vinhos. As pessoas não-negras olham para você e imediatamente pensam se você sabe o que está falando. Isso porque a percepção delas, que aparece no olhar, é que você não os representa. Pela nossa história, a gente não tem a facilidade de conquistar nossos direitos, tudo que conseguimos é com muita luta.

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Como nasceu o seu projeto pessoal e a decisão de homenagear a sua avó?

Quando decidi fazer o meu próprio projeto, eu não sabia como seria, mas ele estava nascendo na minha cabeça desde quando eu era estudante. Atualmente, nós compramos uvas, alugamos uma vinícola e elaboramos nossos vinhos, com a ideia de ter pouca intervenção nesta elaboração. Ter vinhas e vinícola próprias significa ter um volume de produção que para a gente hoje é impossível.

Quantos enólogos negros têm na África do Sul atualmente?

Não tenho as estatísticas, mas o número vem aumentando. O problema é que muitos destes profissionais negros entram no mercado, mas não se sentem confortáveis e acabam saindo.

Que conselhos dá para os profissionais negros no mundo do vinho?

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Eu acho que uma coisa que precisamos entender é que nós temos de trabalhar o dobro ou o triplo para as pessoas valorizarem. É preciso sempre ir atrás de informação e de conhecimento, o que nem sempre é fácil. E isso também não é confortável. Mas você tem de encarar e lutar para ficar na indústria, mas no limite de não fazer nada que lhe é desconfortável. Uma das coisas que me levam para a frente é saber da quantidade de pessoas que eu influencio com o meu trabalho.

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