Tem quem faça pão por razões práticas. Há ainda os movidos pelo desejo de comer algo feito com as próprias mãos - o que, imediatamente, atiça nossos poderes mais pessoais, você sabe... Neide Rigo faz pão - e ensina a fazer pão em cursos disputadíssimos e sempre com selo de imperdíveis - porque lhe faz bem. "É uma coisa que me conecta, tenho uma interação com a massa, adoro fazer pão, significa um prolongamento da vida", acredita. "Você tem que pensar para o amanhã, é uma motivação para acordar no outro dia".
No sobrado alaranjado, com jeito de casa no bosque, em uma rua charmosa da City Lapa, sentamos à mesa da cozinha, planejada especialmente para suas aulas de pão. Enquanto avalia com as pontas dos dedos a massa que espera sua vez de ir ao forno (um presente para o médico que ela iria visitar naquela tarde), ela lembra de uma história de amor não pelo pão, mas por causa dele. "Outro dia estava no meu sítio em Piracaia e uma criança veio brincar comigo. Chegou o pai, meio tímido, e me contou que havia conhecido a mulher por causa do meu levain. Era o primeiro encontro dos dois e ele a convidou para buscar uma porção de fermento na horta (a horta comunitária da City Lapa) antes do encontro propriamente dito", conta. "Eles foram de bicicleta, ela na garupa, sem ter a menor ideia de onde estava indo e do que ele iria buscar. Resultado: eles começaram a fazer pão juntos, se entrosaram, a relação fermentou e hoje eles têm dois filhinhos".
Esse não foi o único enredo de amor intermediado indiretamente por ela. Seu marido, Marcos, médico otorrino, contou dia desses que duas moças relataram uma história semelhante durante uma consulta. Elas haviam se conhecido ao chegar juntas ao destino de resgate do levain e seguem bem agarradinhas desde então. Essa história de colocar o levain no mundo, aliás, é uma constante na vida de Neide, que adora compartilhar bocados do fermento com os vizinhos de bairro, com os amigos e também com seus mais de 170 mil seguidores no Instagram - que podem ser agraciados com bolinhas de fermento distribuídas também em algumas de suas viagens. Em uma delas, aliás, Neide deixou uma cesta com centenas de bolinhas de levain em uma praça no Rio Vermelho, em Salvador. Seus seguidores começaram a mandar mensagens dizendo que não estavam encontrando o presente. Neide não teve dúvida: voltou lá e ficou sabendo que as bolinhas haviam sido levadas por um grupo de policiais, que muito provavelmente nunca passaram perto de um pão de fermentação natural.
Enquanto Neide coloca o pão no forno, avisto sobre a geladeira as estrelas de uma brincadeira recorrente em suas postagens no Instagram: duas "KitcheNeides" (um trocadilho com a marca de batedeiras KitchenAid). Na casa da avó, onde se acostumou a reconhecer o ritual do fazer o próprio pão pela primeira vez, não tinha nem geladeira e por conta disso o processo do fermento era raiz: um bocado da massa do dia conservada em bolinhas no pote de farinha. Simples assim.
Quando o pão está quase pronto, ela me conta que a família por parte da mãe morava na roça. Lembra do quanto o pão da avó era maravilhoso, de fermentação natural, feito no forno à lenha e que fazia parte do processo de feitura colocar a massa para crescer debaixo das cobertas. Um ritual doméstico como outro qualquer, aos olhos de uma Neide ainda menina. "Tenho mais prazer em fazer do que em comer o pão e gosto demais de compartilhar", resume. Me despeço agradecendo a conversa e o pão recebido dias antes, junto com um bloquinho de manteiga enfeitada com alecrim e um chá feito com as flores do sítio em Piracaia. Presente de boas vindas ao bairro. A vida é mesmo cheia de compartilhamentos amorosos. Mas precisa prestar atenção e ter a sorte de bons vizinhos...
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.