Corre solto Brasil afora um Natal diferente deste que querem nos vender. O Natal do cuscuz à paulista, do escaldado de peru, do pato no tucupi, do matambre recheado, do marreco assado, do empadão, da leitoa, do frango com farofa de miúdos, das bolachas em forma de estrela. Mas é muito mais fácil padronizar os hábitos que atendê-los em suas diferenças. Então, que se coma brioche (ops!, panetone – com frutas tingidas e resistência forçada para durar até o inverno).
Gosto daquele Natal que ainda vive por aí, pelo menos na lembrança de muita gente, na minha, na da família do Paraná e na de meus amigos gaúchos, cujo pré-preparo começa com a arrumação da casa para deixá-la um brinco. Na véspera, os meninos buscam musgo para disfarçar a lata do pinheiro ou para fazer o presépio que vai acomodar personagens moldados com barro cru e pode ser verdejado também com grãos de arroz germinado. O presente é um item importante só para as crianças, que ainda conseguem se alegrar com bolas coloridas ou bonecas que não falam nem comem. Talvez isso tenha ficado para trás.
Na cozinha reinam as mulheres e, para garantir a provisão para os dias de festa, as latas velhas e muito limpas de biscoito começam a ser enchidas com bolachas cortadas em formato de estrela, ou rosquinhas de farinha de trigo ou polvilho. Em pleno verão, roscas doces repousam cheirosas sob cobertores para levedar na calma escura. E, direto do forno, rumo a toda a vizinhança para atiçar as vontades, vapores de cucas de frutas assando. E é aí que quero chegar. Nas cucas, nas frutas e nas uvas.
FOTO: Felipe Rau/Estadão
Minha mãe não comprava panetone e quando começou a aparecer era um só, presente da firma do meu pai. Mas ela fazia e ainda faz cuca, quase sempre de banana, para aproveitar a penca que amadurece, e às vezes de maçã, mas nunca de uva. Junto das frutas de época, como pêssego, melancia e manga, as uvas niágara eram para a sobremesa do almoço, ao natural. Eram compradas em caixas. Vinham rosadas, cobertas com fina camada de cera translúcida, bojudas e cheirosas, como acontece ainda hoje, embora já não pareçam tão saborosas. Quando passávamos as férias no sítio dos avós, a videira se enchia de cachos maduros com doçura de mel justo nos dias de festas, como presentes de Natal, e baciadas iam à mesa, apesar do ataque prévio das crianças ao parreiral provando uva a uva para eleger o melhor cacho.
Mas, para você não achar que vivo de reminiscências, o vinho de hoje é muito melhor que aquele que se batizava com água, açúcar e gelo para ficar bom. Temos muito mais opções de boas comidas para variar o cardápio, e não guardo nenhuma boa lembrança dos gritos do porco.
Coisa boa é que neste ano tive a sorte de ter uma boa safra de uvas niágara agarradas à cerca, no meu quintal, sem agrotóxicos. E não pense que estou só. Andando pelo bairro, já vi várias parreirinhas de jardim carregadas. Com a safra, resolvi fazer a cuca cuja receita aprendi com d. Iraci Berghan, que faz para vender, em Ivoti (RS), onde cuca é o panetone de todo dia e será o meu de Natal, com adaptações. É uma cuca fofa, com cobertura refrescante, ácida e doce.
Os gaúchos descendentes de alemães, no Rio Grande do Sul, têm um dialeto próprio, pouco compreendido por brasileiros e até mesmo pelos germânicos, mas a palavra cuca é uma exceção, pois já foi incorporada ao vocabulário gastronômico de quase todo o País, com várias opções de cobertura e até em versões modernas feitas com fermento químico em vez da levedura. Trata-se de uma corruptela do nome original cheio de consoantes. O bolo com farofa crocante é conhecido na Alemanha como streuselkuchen, sendo que streusel é a farofa – mistura de manteiga, açúcar e farinha – e kuchen quer dizer bolo. Streuselkuchen virou kuchen – ou cuca.