Vamos falar hoje de exóticos ingredientes amazônicos. Talvez cumaru, sapucaia, patauá? Não. É a vez de arroz, milho, amendoim, abóbora, cacau... Um estudo publicado na semana passada na revista Nature, por cientistas de seis grandes universidades, obriga-nos a rever conceitos fundamentais. Dois mil anos antes de Catão escrever o De Agri Cultura – baseado no tripé mediterrâneo trigo-parreira-oliveira – os habitantes do vale do Guaporé, na atual Rondônia, haviam domesticado quatro espécies de arroz (gênero Oryza), das 22 que conhecemos mundo afora. A pré-história amazônica começou a ser compreendida nas últimas décadas. Foram os alimentos – graças à datação com radiocarbono – a fornecer pistas que permitiram começar a estimar tamanho e características de importantes civilizações.
De acordo com Lautaro Hilbert, Eduardo Neves e outros sete cientistas que assinam a nova pesquisa, a evidência da domesticação se dá a partir do registro de expressivo aumento no tamanho dos grãos, além de que pelos indícios de maior intensidade no uso. Se o consumo de arroz selvagem na região já existia há 8 mil anos, sua domesticação ocorreu 4 mil anos atrás. Das quatro espécies de Oryza em questão, parece que a preferida pelos indígenas era a Glumaepatula. É a única que já comi e cozinhei, pois até hoje abunda em estado selvagem no Rio Negro, no Solimões e no Pantanal: me chamou a atenção pela intensidade de seu aroma de nozes. De acordo com pesquisas da Embrapa, tem mais alto conteúdo protéico em relação às variedades hoje empregadas na agricultura, derivadas de espécies asiáticas, e pode contribuir para melhorá-las. A diversidade da nossa floresta não é apenas – como afirmou Ferran Adrià ao visitar Paulo Martins e Alex Atala em 2008 – o “futuro da cozinha”, mas está cravada também em seu presente e passado. No mesmo local onde se deu a domesticação do arroz, já havia se registrado o uso de variedades domesticadas de plantas de grande sucesso na agricultura, tais como o milho há 5.300 anos, além de amendoim e abóbora. Os pesquisadores identificam duas razões para tão excepcional desenvolvimento nessa sub-região da Amazônia, que inclui as bacias de Guaporé, Alto Madeira, Mamoré e Beni. A primeira diz respeito à fertilidade pela inundação das várzeas e pela proximidade da transição com os cerrados, algo, porém, que se aplica a outras áreas da região. A segunda é que ali se concentram inúmeras línguas de sete famílias distintas, tendo sido o centro de dispersão dos grupos Tupi-Guarani: como comparação, apenas duas famílias linguísticas existem em toda Europa. A diversidade etno-cultural , associada a condições naturais favoráveis, deu assim lugar a uma espécie de Embrapa pré-histórica, um laboratório que ao longo de milênios contribuiu para aprimorar a lavoura. Essa sub-região foi objeto, nas últimas três décadas, de desmatamento especialmente agressivo. Além do capital natural, ameaça-se também esse grande banco de dados sobre formas sofisticadas de manejo de ambientes complexos. No caso do arroz, os autores alertam que o conhecimento ali guardado pode abrir caminhos para aumentos de produtividade, manejo de pragas e adaptação à mudança climática. Mas os vestígios desse conhecimento sobram apenas em algumas unidades de conservação e terras indígenas.