Basta uma rápida pesquisa na internet para constatarmos que na história da gastronomia, a maioria dos pratos famosos é considerada uma criação masculina e a contribuição das mulheres tende a estar mais conectada aos doces.
Segundo registros históricos, a entrada das mulheres nas cozinhas profissionais só se deu mais recentemente, mais especificamente no século XVIII, na França. “É um fato curioso elas não estarem na cozinha profissional antes disso, visto que sempre foram responsáveis pela alimentação de suas casas. O homem e o machismo estrutural afastaram as mulheres desse espaço por muito tempo”, conta a docente da Anhembi Morumbi e consultora na VA Gestão de Negócios, Patrícia Bertolucci.
E não só o protagonismo era reservado para os homens, as homenagens também. Bons exemplos são o fettuccine Alfredo, o molho béchamel, o Filé à Oswaldo Aranha e o brigadeiro, que, apesar de ter sido criado pela confeiteira Heloísa Nabuco de Oliveira, foi pensado para a campanha presidencial do brigadeiro Eduardo Gomes.
Conheça agora a história de criações femininas deliciosas e suas receitas ensinadas por chefs da atualidade: quindim, suspiro, madeleine, torta holandesa e brownie de chocolate.
Aline Guedes, a gastronomia dos quilombos e o quindim
A chef Aline Guedes, docente da Anhembi Morumbi, também se dedica aos estudos da cultura afrodiaspórica e hoje, estabelecida como profissional, conta que teve dificuldades para se encontrar na época em que fazia o curso de gastronomia no Senac. “Foi muito difícil no começo, eu era a única menina negra na faculdade, havia poucas turmas e poucas opções de cursos universitários. Eu não conseguia achar pessoas parecidas comigo”, explica.
Porém, a história mudou de rumo quando ela chegou no mestrado em hospitalidade onde pôde se aprofundar nas pesquisas sobre os quilombos remanescentes do estado de São Paulo e repensar sua postura de mulher e negra. “Percebi que estava criando uma personagem para ser aceita pela maioria das pessoas e entendi que podia me enxergar diferente. Da forma de me vestir, ao cabelo, era tudo muito direcionado para o que achava que me faria ser aceita e não para o que eu era ou queria ser”, diz ela.
História do quindim
Com esse histórico e especialidade, ninguém melhor para nos ensinar a fazer nossa primeira criação feminina: o quindim. A receita, apesar de ter nascido em Portugal como Brisas do Lis, ganhou a carinha que conhecemos só depois de chegar ao Brasil. Aline esclarece que a sobremesa foi criada por freiras portuguesas, mas as escravas africanas usaram o coco para substituir a amêndoa e rebatizaram o doce como quindim, que significa afeto, dengo. Confira o passo a passo do quindim, que ainda vem cheio de dicas da Aline para você acertar tudo na hora do preparo.
Julia Junqueira, a França, o suspiro e o merengue
E por falar em carinho, a confeiteira e proprietária da Le Bon Gâteau, Julia Junqueira, aprendeu a fazer suspiros quando tinha 12 anos e o doce foi o responsável por despertar seu amor pela confeitaria.
Em 2014, já formada em administração, Julia passou a ver a confeitaria como um caminho. “Eu não queria trabalhar com a parte da cozinha salgada, nem fazer faculdade de gastronomia. Então decidi ir para a França, o que foi muito legal, porque me formei no intensivo da École Lenôtre e lá botei a mão na massa”, detalha.
De volta ao Brasil, a confeiteira começou a vender os doces que preparava somente para encomendas, até que em 2015, resolveu abrir a loja Le Bon Gâteau: “Acabei focando muito nesse viés francês, porque é um tipo de confeitaria que é menos doce, bastante artesanal, e que opta pelo uso dos ingredientes frescos”.
História do suspiro
Por suas bases e conhecimentos franceses, além de sua história com o merengue francês, mais conhecido como suspiro, aqui no Brasil, propusemos à Julia que recriasse as madeleines e o suspiro de forma que fossem mais parecidos com os originais. E, para quem não sabe, há diversas maneiras de se preparar o merengue, mas a versão como conhecemos aqui no Brasil foi introduzida pela rainha Maria Antonieta, que o preparou com suas próprias mãos na época em que morava no castelo Petit Trianon, localizado em Versalhes, segundo o livro ‘Larousse Gastronomique’. Uma outra curiosidade é de que há rumores que o suspiro tenha sido nomeado pelo poeta peruano José Gálvez Barrenechea, que comparou o doce com suspiro doce e suave de uma mulher.
História da madeleine
A madeleine, por sua vez, de acordo com o livro ‘Larousse Gastronomique’, foi criada por uma camponesa chamada Madeleine. O bolo - não, não é um biscoito - foi feito para o duque francês Stanislaw Leszczynski em 1755, e ele o nomeou de madeleine em homenagem à mulher que o havia preparado. Mais tarde, a filha do soberano, Marie, divulgou o bolo por Versalhes.
Silvia Maria do Espírito Santo, a Inglaterra e a torta holandesa
Você sabia que a famosa torta holandesa foi criada por uma brasileira que atualmente mora na cidade de Vinhedo, do estado de São Paulo? Silvia Maria do Espírito Santo, em 1990, usou manteiga, açúcar, ovos, creme de leite, leite, achocolatado em pó e biscoito maria para criar o doce que viria a ser um tremendo sucesso.
A confeiteira tocava sua cafeteria Café Bruges, e serviu a sobremesa que esgotou na hora do almoço. A torta ganhou o gosto de seu público, o que a fez querer explorar mais e mais a receita, que também foi aperfeiçoada por um toque de seu pai. “Ele fez uma crítica construtiva e disse que a bolacha maria não era a melhor opção, porque ela amolecia com o passar do tempo, então, mudei para a Calipso, que ficou até hoje”, relembra.
A origem já está explicada, mas e o nome, de onde veio? Depois de uma tragédia em sua vida, ela resolveu ir para a Inglaterra em 1989, onde nem tudo saiu de acordo com os planos. “Eu achei que fosse possível aprender inglês em 30 dias e acabei ficando sem dinheiro. Então eu fui trabalhar na casa de uma família holandesa onde recebi muito apoio”, conta.
Depois de um ano, chegou a hora de patentear o doce, que estava ganhando fama: “Recebi uma ligação que eu tinha que decidir de imediato qual seria o nome, e, por toda a gratidão que senti, decidi fazer uma homenagem. Então falei ‘torta holandesa’”.
Simone Izumi, sua paixão por chocolate, arte o brownie
O chocolate ganhou o coração da chef Simone Izumi, proprietária da cafeteria Chocolatria - que significa idolatria pelo chocolate. Porém, essa história não começa pelo amor pela gastronomia, mas por necessidade mesmo. “Eu conciliava três empregos. De segunda a sexta, trabalhava como secretária no interior. Depois auxiliava na conta de materiais de uma obra. Na sexta, voltava para São Paulo, e no final de semana, eu confeccionava trufas para vender no restaurante da minha tia”, recorda.
Formada em arquitetura, Simone começou a se dedicar à confeitaria em 2004 sem ter estudos sobre o tema, ainda na cozinha de sua mãe. As oportunidades surgiram com o tempo, assim como o conhecimento, até que começou a escrever um blog chamado Chocolatria, se profissionalizou no ramo do chocolate e começou a repassar seu conhecimento através de aulas.
Mais tarde, escreveu um livro e sentiu que estava começando a entender seu propósito. Em 2017, abriu a cafeteria, mas a arquitetura continuava presente na decoração da loja e também nos doces. “O meu objetivo é elevar a categoria do chocolate para a arte. Eu tenho muito respeito pelo chocolate nesse ponto, gostaria que ele fosse visto como arte”, ressalta.
História do brownie
Por ser fã número 1 do chocolate, pedimos para a Simone facilitar ainda mais a receita de brownie, e o passo a passo que ela compartilhou veio cheio de dicas para facilitar o preparo. São muitas as histórias sobre a criação do brownie, mas de acordo com o catálogo da Sears Roebuck de 1898, o doce nasceu em Chicago, nos Estados Unidos, em 1893. Bertha Palmer descreveu exatamente como queria um doce para o chef do hotel Hilton Palmer House, e, assim, nasceu o famoso bolinho.