Um dos maiores chefs do mundo, estandarte da nouvelle cuisine, movimento que revolucionou a alta gastronomia na França, e formador de milhares de cozinheiros, o francês Paul Bocuse morreu aos 91 anos, informou neste sábado (20) o ministro do Interior da França, Gerard Collomb. “O senhor Paul era a França. Simplicidade e generosidade. Excelência e art de vivre”, disse o ministro, que também alcunhou Bocuse como o “papa da gastronomia francesa”.
Segundo um amigo e companheiro de profissão, próximo à família, o renomado cozinheiro morreu em seu restaurante, localizado em Collonges-au-Mont-d’Or, um vilarejo perto de Lyon, na região centro-leste da França. Ele sofria de Mal de Parkinson.
Desde 1965, Bocuse tinha três estrelas no Guia Michelin, a bíblia da gastronomia, com o L’Auberge du Pont de Collonges, seu restaurante no subúrbio de Lyon. Os pilares da cozinha da casa eram ingredientes frescos, molhos leves, combinações de sabor inusitadas e uma busca implacável pela inovação baseada no total domínio de técnicas clássicas. Além disso, a apresentação era uma questão importantíssima, com visuais que seduziam. Com o passar dos anos, Bocuse montou um império gastronômico global, com casas nos Estados Unidos e no Japão, entre outros países.
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Seu prato mais famoso é uma sopa de trufas, batizada de VGE, em referência ao ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, que concedeu a Bocuse a medalha da Legião de Honra, uma das mais altas honrarias francesas. Trata-se de um preparo com base de caldo de galinha com trufas e foie gras assado em uma forma coberta por massa folhada. Entre outras de suas inusitadas criações estão um musse de badejo com lagosta envolto em escamas e barbatanas feitas de massa folhada e o tradicional preparo do frango de Bresse como recheio de uma bexiga de porco.
Bocuse nasceu em Collonges-au-Mont-d’Or em 11 de fevereiro de 1926, em meio a uma família de cozinheiros, que manteve as tradicionais receitas e técnicas em gerações até chegar ao conhecimento mundial com Paul Bocuse. Aos oito anos fez seu primeiro prato consistente, rins de vitela com purê de batatas. Quando chegou à adolescência, conseguiu o trabalho de aprendiz em um restaurante local. O treinamento foi interrompido pela 2ª Guerra Mundial. Foi para um acampamento em Vichy onde comandou a cantina e o abatedouro. Em 1944, foi ferido em combate e recebeu a condecoração miligar Croix de Guerre.
Bocuse foi nomeado o “cozinheiro do século” pelo icônico guia de restaurantes francês Gault & Millau. Em 2011, o Instituto de Culinária da América, centro de excelência gastronômica dos Estados Unidos, também considerou o chef francês como o maior nome da gastronomia no século 20, abrindo um restaurante com seu nome.
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A influência de Bocuse na gastronomia mundial é tão apreciada que a Disney, mais precisamente o parque Epcot, em Orlando, colocou seu nome de forma definitiva no continente americano. Em 1982, ele inaugurou o Les Chefs de France no Epcot. Atualmente, seu filho, Jerome Bocuse, é dono do estabelecimento Monsieur Paul na atração. Era uma figura midiática, constantemente presente na mídia e em programas de televisão. Dizia que “há de se tocar o tambor da vida”. Em 1987, criou o concurso mundial Bocuse D’Or, realizado a cada dois anos e conhecido como a Copa do Mundo da gastronomia. Em 1990, fundou o Instituto Paul Bocuse, que se tornou uma das escolas de gastronomia e hospitalidade mais importantes do mundo.
Pupilos no Brasil
Bocuse teve papel fundamental para a gastronomia brasileira, ao indicar dois de seus pupilos, Laurent Suaudeau e Claude Troisgros, para comandarem projetos no País.
“Mr. Paul foi meu padrinho a vida inteira. Desde os oito anos de idade, quando assinei meu primeiro contrato de trabalho no L'Auberge du Pont de Collonges, ele acreditou em mim e sempre me apoiou. Ele não só foi o maior cozinheiro da sua geração como também mudou o caminho da cozinha francesa e mundial com seus pensamentos revolucionários, mas também foi um homem de valores, respeito e de grande coração. Ajudou os amigos, acreditou nos jovens, sempre com palavras generosas e bem humoradas. Paul Bocuse para sempre!", afirma Claude Troisgros.
Suaudeau, que veio ao Brasil 1979 para a assumir a cozinha do Hotel Meridien no Rio de Janeiro, destaca sua imensa generosidade. “Eu o levo pessoalmente no meu dia a dia. Ele era um homem que confiava no jovem, em sua capacidade, que gostava de ver o progresso das pessoas e chancelava o talento do profissional, não importava a raça, cor, origem ou crença. Ele sabia detectar com muita força o talento em cada pessoa que encontrava”, diz.
Mas se notasse que os pupilos estavam desperdiçando oportunidades, a generosidade se transformava em dureza. “Era também um homem duro que odiava os charlatões. Da mesma forma que era fiel e honesto com o talento que encontrava, desprezava os que não mostravam o desempenho ou comprometimento esperado. Era um homem de duas medidas”, afirma Suaudeau, que trabalhou com Bocuse por nove anos e o visitava frequentemente sempre que ia à França.
É emblemático o papel transformador que exerceu sobre a cozinha brasileira. “Foi um divisor de águas porque bancou as decisões dos jovens que indicou. Ele poderia falar que não queria mandioquinha no cardápio (diz em referência à célebre criação da mousseline de mandioquinha com caviar que incluiu no menu do hotel Meridien), mas defendia todas as decisões gastronômicas em detrimento das burocráticas.”
Sua preocupação com o produto e não com a inovação de técnicas moldou sua contribuição. “Ele entendeu a importância de se trabalhar com o produto para se ter uma cozinha de qualidade. Ele já falava isso em 1970. Nunca foi adepto de uma cozinha transformadora, defendia o produto e seu processo social, econômico e ecológico” O gastrônomo e colunista do Paladar, Roberto Smeraldi, lembra do mote escrito no pé de cada cardápio: “Como é difícil ser simples!” “Talvez por isso sua casa era a única, entre as grandes, em que eu comeria até diariamente. Não deixa apenas legados e saudade: sua 'cozinha de mercado' é uma tarefa universal, a ser entendida e praticada ao longo do século 21”, afirma Smeraldi.
/ COLABORARAM CARLA PERALVA E MATHEUS PRADO