De que adianta ter uma receita de ouro em mãos, se os ingredientes disponíveis na despensa não são lá essas coisas? Por melhor que seja o cozinheiro, não tem jeito, a origem de um bom prato está na qualidade da matéria-prima. Há quem consiga mascarar insumos de baixa qualidade com a tal da “mão boa para cozinha”, mas milagre, arrisco dizer, ninguém faz – lembrando que não foi um cozinheiro que transformou água em vinho; mas isso são outros quinhentos. E claro que conhecimento, técnica e rigor na cozinha contam – e muito –, mas vamos começar do começo.
Alethea Suedt, d’A Padeira, depois de importar seu próprio moinho com cilindro de pedra da Áustria, em 2018, para fazer pães (melhores e cheios de sabor) com farinha de trigo fresquinha, moída na hora, decidiu dar um passo à frente (ou seria para trás?) e plantar seu próprio trigo. “A falta de origem na panificação me incomodava bastante. Fazer pão, para mim, não é só abrir um saco de farinha, na maioria das vezes importada, e misturar com água e sal. O pão começa no campo, na terra, e eu saí em busca disso, de plantar o pão.”
Não foi uma tarefa fácil – é difícil ter acesso aos produtores devido ao monopólio dos grandes moinhos. “Precisei de muita pesquisa e sorte, sempre digo isso. Além de encontrar possíveis parceiros, era preciso convencê-los a cultivar tipos específicos de trigo de maneira ancestral.” Em suma, Alethea buscava agricultores familiares com produção essencialmente orgânica, conscientes e preocupados com a saúde do solo e das pessoas.
O primeiro parceiro, o Pupin, nem triticultor era, “mas tinha um sítio lindo em Piracaia”, no interior de São Paulo, com produção familiar orgânica exemplar. “Ele, que vive do que planta, cometeu a loucura de transformar parte de sua propriedade em um laboratório”, conta. Em contrapartida, Alethea comprometeu-se a arcar com todos os custos do processo, inclusive com as perdas, caso houvesse. “O risco é todo meu”, explica. A primeira colheita aconteceu em novembro de 2019, depois de um fracasso no cultivo no ano anterior.
Além da produção paulista, Alethea conta com o trigo produzido especialmente para ela na propriedade da família Woss, em Constantina, no Rio Grande do Sul. Eles reservam um hectare, dos 16 onde plantam trigo, para a padeira. “Nesse espaço, toda a decisão que precisa ser tomada passa por mim”, conta. E o que é colhido ali é arrematado por ela. “Pago quatro vezes mais do que pagam na região, porque, além de ser uma produção personalizada, valorizo a qualidade extrema.”
“Eles plantam o trigo como eu faço o pão”, atesta. As fornadas que saem agora na padaria são de pães produzidos com trigos aton, audaz e toruk da safra de 2020 – cada tipo constitui farinhas com sabor, força e elasticidade diferentes. É com um mix dos dois primeiros que Alethea prepara o pão de grãos tostados, de fermentação natural, com chia, gergelim, linhaça dourada e sementes de girassol e de abóbora. Já com o toruk, além do pão de castanha de pequi, sazonal, faz-se o belo folhado de caju com um toque de rum.
Tomatinho vermelho
Quase duas toneladas de tomate. Esse era o consumo médio, da variedade italiana, na pizzaria Carlos até antes da pandemia. Hoje, operando somente com delivery e retiradas, a média caiu para 1,2 tonelada, o que, ainda assim, é uma fatia relevante do total de gastos com ingredientes na casa, que desde a abertura, em 2015, procura priorizar o pequeno produtor. “Mas o tomate era comprado em hortifrúti. Para onde estava indo todo esse dinheiro? De onde vinham esses tomates?”, indagaram os sócios.
Dispostos a mudar esse cenário – de olho no papel que a pizzaria exerce dentro da cadeia produtiva e também em busca de um produto de melhor qualidade –, foram atrás de um agricultor familiar que topasse produzir tomates orgânicos a um preço viável e sob algumas condições. “Buscávamos uma relação de cooperação. Não era para ser ‘você vende, eu compro’, era mais que isso. Como poderíamos pensar e trabalhar juntos?”, conta Arthur Hirsch, que assumiu a dianteira do projeto.
Em outubro de 2019, os sócios foram a campo, literalmente, para tirar a Estufa Circular, como batizaram, do papel. Após algumas expedições, decidiram fincar as bases do programa em Ibiúna, no interior de São Paulo, uma vez que a cidade reúne profissionais engajados com a produção orgânica e é carente de ações colaborativas junto com os agricultores. Além disso, estar próximo à capital paulista, no máximo a 70 km de distância, era pré-requisito para a escolha.
Marta de Sales, do sítio Mirante do Sol, foi escolhida logo de cara para ser a primeira produtora incubada, pela “sintonia de ideias” e pelo manejo agroecológico. A antiga plantação de tomates-cereja deu lugar a de tomates italianos, cujos frutos só serão colhidos quando estiverem maduros – ao contrário do que ocorre na maioria dos cultivos, onde os tomates são tirados do pé ainda verdes para aguentar o longo trajeto entre o campo e a mesa.
Além da compra garantida – o planejamento do volume de produção é feito entre as partes –, a Carlos oferece subsídio para assistência técnica (oferecida pela Casa do Agricultor de Ibiúna) e fica responsável pelo frete (a distribuição é uma das pedras nas botas dos produtores). Um carro da pizzaria vai buscar in loco os tomates que serão assados no forno a lenha antes de virar o molho que recobre as redondas (e que também é vendido fresco ou congelado, em potes de 380 gramas; R$ 24).
Atualmente, a Estufa Circular conta com mais três produtores incubados, nos mesmos moldes. Eles devem iniciar a plantação da próxima safra no mês que vem, com colheita programada entre os meses de setembro e outubro.
João e o pé de feijão
Dedicado à cozinha caipira, a Casa do Monjolo, restaurante que deve inaugurar na mineira Passa Quatro assim que a pandemia permitir, tem seu cardápio apoiado no tripé milho, feijão e porco. Tais ingredientes são cultivados e criados na Fazenda Velha, ali do lado, pelo João Lara, o Joãozinho, que atendeu ao capricho do chef Vitor Rabelo de trabalhar só com sementes crioulas.
Em busca destas sementes, a dupla encontrou variedades de feijões que perderam espaço ao longo dos anos para os populares feijão preto e carioca. De dona Marta, caipira icônica que vive isolada no pé da Serra da Mantiqueira, ganharam dois quilos de feijão paquinha, que logo foram replantados na fazenda. As expedições também renderam amostras dos tipos rosinha, mãezinha, enxofre e rajado, cuja próxima colheita deve ocorrer em três meses.
Com os grãos do mãezinha, que é mais firme, Vitor vai fazer a salada que acompanha o peixe do dia empanado no fubá. Já o enxofre, que é amarelo, saboroso e tem vocação para espessar caldos, vai virar o cozido que faz tabela com o tradicional leitão na lata. O paquinha da dona Marta, que retém menos caldo, não poderia ter outro destino senão converter-se em feijão-tropeiro. Além dos pratos, oferecidos em esquema à la carte, a casa deve disponibilizar os feijões para venda, junto de outros ingredientes da fazenda.