“Absolutamente nada”, retrucou o garçom do Jojo pausadamente – quase separando as sílabas para se fazer entender –, em resposta a uma cliente que buscava pelas opções vegetarianas do cardápio. O impasse, ab-so-lu-ta-men-te verídico, refletia a realidade do restaurante, aberto em 2016, até pouco tempo atrás. Isso porque a base para os caldos dos lamens tradicionais é feita a partir de frango, legumes e dashi (de alga kombu, shiitake e katsuobushi, ou raspas de peixe bonito defumado). Em janeiro, após anos de pesquisas e testes, Simone Xirata finalmente chegou a uma versão que lhe fez gosto. “Desde a abertura da casa, os clientes imploravam por isso, mas não conseguíamos chegar a uma receita à altura”, conta.
A busca pelo tal caldo vegetariano que, mesmo sem o frango e o katsuobushi, tinha de ser saboroso, potente e rico em umami, incluiu viagens ao Japão e aos Estados Unidos, onde a cultura do lámen também é bastante difundida. Sem sucesso. “Cheguei a consultar blogueiros japoneses especializados, que comem o prato todo santo dia, e nenhum deles soube me indicar uma opção realmente gostosa para eu provar. ‘Não existe’, eles diziam. O vegetarianismo não pegou entre os japoneses.”
Um desses blogueiros contou a Simone que, certa vez, provou uma versão ótima na França. Bem, fato é que os franceses entendem de caldo (agora, se entendem de lámen é papo para outra história). Eureka! Simone teve a ideia de combinar o dashi de shiitake e kombu com o clássico mirepoix (mistura aromática de cebola, salsão e cenoura). Abóbora cabotiá, shoyu, mirin e especiarias japonesas guardadas em segredo também entraram na receita para dar bossa.
O Veggie Ramen, como dá as caras no cardápio, traz cogumelos eryngui, aspargos, minimilho e tomate fatiado mergulhados num caldo untuoso, perfumado e com delicada potência. Dá para sentir as camadas de sabor – ora salgada, ora adocicada, com o arremate do umami – construídas nas três horas de cozimento em fogo lento. A opção mal entrou em cartaz e já tem ótima saída, “mas a maioria dos que pedem não são descendentes”, destaca Simone.
No Isla Oriente, que celebra as diferentes cozinhas asiáticas no delivery (em breve – e quando a pandemia permitir –, o restaurante ganhará ponto fixo no espaço onde funcionava o irmão Isla Café), a chef Izadora Ribeiro passava frequentemente pelo mesmo perrengue. “Os clientes perguntavam: essa opção é vegana? E a gente respondia: é quase”, ri. Míseras gotinhas de nampla, de tão forte que é esse molho fermentado de peixe, excluíam os pratos da categoria. “Não tinha condições, a gente precisava criar uma alternativa vegana que agregasse complexidade e potência às receitas”, conta.
Hoje, para substituir o nampla, a chef prepara um caldo concentrado de alga kombu. “Não só pelo umami, mas pelo sabor delicado de mar”, explica. Já o clássico molho de ostra, também bastante popular na Ásia, alterna o protagonismo nas receitas onívoras com o caldo de shiitake seco, no caso das veganas.
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Além de incrementar diferentes pratos do restaurante, esse “nampla vegano” vira ingrediente na receita da versão, também vegana, do molho vietnamita batizado de nuoc mam. Ele leva ainda água, limão, vinagre de vinho branco, açúcar de palma, pimenta dedo-de-moça, cenoura, pepino, nabo e alho – e resulta num líquido potente, ao mesmo tempo ácido, salgado, picante e adocicado, que incrementa a salada Nimê, opção desconstruída do rolinho vietnamita, e o mandu, dumpling frito de vegetais.
Tirem os franceses da cozinha
Difícil dizer o que Escoffier, um dos pais da gastronomia moderna, pensaria de um demi glace feito a partir de um caldo vegetal, sem os ossos bovinos tostados, e de um bechamel sem leite e sem roux, engrossado com outro tipo de espessante que não a mistura de manteiga e farinha – logo ele que descreveu minuciosamente o preparo desses e de outros molhos clássicos franceses em seu Guia Culinário, publicado em 1921.
Bem, contrariado ou não, fato é que os tempos mudaram e que chefs têm expandido cada vez mais seus horizontes rumo ao reino vegetal. “A ideia é aplicar técnicas da gastronomia clássica, adaptando receitas com criatividade para preparar pratos vegetarianos ou veganos”, comenta Rafael Navarini, chef do Mensa. “A intenção é fazer pratos elaborados e gostosos, muito além da massa ou do risoto, para que até quem não segue uma dieta restritiva se interesse por ele.”
Na cozinha do seu restaurante – fechado até segunda ordem por conta da pandemia –, Rafael adaptou o demi glace tostando lentamente uma combinação de vegetais (cenoura, cebola, beterraba, couve-flor, tomate, berinjela) e cogumelos no forno até o limite da caramelização, “para incrementar a cor e o sabor adocicado com um agradável amargor”. Depois de assar, os vegetais são infusionados em água, que é coada e reduzida. Para acertar a textura – o demi glace tradicional é um molho bem viscoso –, o chef adiciona uma pitada de goma xantana.
Potente e muito saboroso, esse molho já foi usado em pratos como o porcini grelhado com gema curada e ralada, cebolinha e pinhão. “Era um prato de inverno, que precisava de um molho intenso. Se a gente usasse o demi glace tradicional, com ossos, ele deixaria de ser vegetariano. Daí a ideia de tostar os vegetais”, explica Rafael.
Já o chef Renato Caleffi criou uma versão vegana para o bechamel – ou molho branco, para os mais chegados. Em seu Le Manjue, que desde a abertura, em 2007, prioriza ingredientes de origem vegetal e orgânicos, ele combina leite de inhame feito na casa (com o tubérculo ralado e cozido), couve-flor, biomassa de banana verde e temperos para atingir um creme branco suave e cremoso.
“Molhos sem leite e manteiga precisam de algum ingrediente que dê cremosidade e liga. Isso pode ser feito com amido, com mandioca, inhame, frutas ricas em pectina, linhaça. Legumes, além de ajudar na consistência, também dão sabor a caldos que não levam carnes nem ossos”, ensina a chef Renata Braune, professora da Le Cordon Bleu. No Le Manjue, o bechamel vegano é, ainda, aromatizado com capim-limão e servido com tofu defumado e avelãs tostadas sobre talharim.