O mundo das sorveterias é das mulheres. Pelo menos é essa a sensação que surge quando damos uma volta por casas que servem a sobremesa em São Paulo. Sozinhas ou não, mulheres comandam algumas das sorveterias mais premiadas e criativas da cidade e quebram preconceitos machistas e ajudam a alavancar um mercado em transformação.
Uma das primeiras a entrar nesse mercado de cabeça foi a chef gelatière Marcia Garbin. Ela abriu a Gelato Boutique em 2015, apostando em sabores autorais e um caminho mais sofisticado do que estava sendo praticado no mercado depois de se formar em Paris pela Cordon Blue e pela única faculdade focada em sorvetes no mundo, em Firenze, na Itália.
“A gastronomia, no geral, sempre foi muito masculina. Já participei de um festival em que eu era a única mulher. Hoje, ainda é predominante a presença masculina, mas já podemos contar muito mais com a presença feminina”, comenta Marcia. “Ainda temos algumas situações machistas no dia a dia, quando acham que a gente é café com leite, que a gente é mais fraca. Mas acredito que hoje conquistei o meu lugar, o respeito do mercado”.
Depois de Marcia, outras mulheres começaram a surgir na cena paulistana frente às sorveterias. É o caso de Mariana Paschoarelli, com a Walnuts, na Vila Mariana. Ela, ao lado de outros três amigos, abriu essa casa de sorvetes inusitados em 2017. Quem vai lá, encontra sabores como sorbet de limão com melaço de cana de açúcar, melancia com hibisco, chocolate branco com menta e até mesmo sorvete de Romeu e Julieta.
Mariana acredita que o mercado mudou muito, inclusive com a expansão de novas gelaterias e sorveterias e com mais mulheres pensando e organizando essas sorveterias.
“É uma evolução natural, que deveria ter ocorrido há muito tempo. Ainda há muitos sorveteiros frente às empresas, então ainda temos um caminho até virar algo equivalente. Mas acho que as mulheres estão mais incluídas no mundo da gastronomia como um geral. Hoje em dia vemos muito mais mulheres chefes de restaurantes, confeitarias e padarias do que há poucos anos atrás. Estamos provando nosso valor e talento há anos, através de muito trabalho e esforço extra, já que não basta ser boa e eficiente para conseguir uma posição de liderança”, contextualiza uma das três sócias por trás da Walnuts.
Novas gerações
Depois de histórias como as de Mariana e Márcia, é possível dizer que novas gerações de mulheres começaram a tomar conta das sorveterias por São Paulo. É o caso da Albero dei Gelati, de Fernanda Pamplona, que abriu as portas em 2019. A dona teve seu primeiro contato com sorvetes por meio de seu marido, Marco Giancola, um dos sócios da gelateria Casa Elli. “Na época, ofereceram um curso de gelataia. Como bela curiosa, acompanhei as aulas e fui me apaixonando, sempre pensando nos produtores e como transformar os produtos deles em gelato”, diz. Depois disso, foi passar uma temporada na Itália.
Foi lá que ela se apaixonou pelo conceito da matriz italiana da Albero dei Gelati, que busca usar apenas produtos locais para a produção dos sorvetes. Ela, então, foi a responsável por trazer a marca para o Brasil, com a cara, o gosto e cores de produtos brasileiros – desde a massa até a casquinha do sorvete. Hoje, depois dessa primeira jornada, Fernanda Pamplona nota que o Brasil está à frente quando se fala em mulheres à frente de gelaterias.
“Pude notar que na Itália, por exemplo, há muito mais homens nas cozinhas das gelaterias. Aqui em São Paulo, acredito, e fico muito feliz, que as mulheres estejam ocupando mais esse espaço”, diz Fernanda. “Eu adoro colocar a mão na massa e me anima ver outras mulheres conquistando, cada vez mais, esse espaço com dominância masculina. Temos todo potencial e capacidade, além de muita força, para orquestrar tanto a cozinha, quanto a parte administrativa. Acredito que as mulheres têm tomado consciência de suas habilidades e capacidades e isso estimula outras, porque vemos tantas bem-sucedidas na área. Podemos ir muito mais além da decoração, visual do vitrine e o acabamento dos gelatos”.
Saindo de Pinheiros, Jardins e Vila Mariana, há histórias de mulheres empreendedoras à frente de sorveterias também na zona norte. Na Dezato, sorveteria conhecida pelo sorvete de bolo de cenoura, está Annaysa Salvador Muniz Kamiy. Formada em administração, ela ganhou uma bolsa para estudar na Holanda em 2020. Durante o mestrado e doutorado, ela começou a ter ideias para uma sorveteria. Até largar tudo para apostar a carreira na Dezato.
“Espero que a gente tenha muito mais mulheres [à frente de sorveterias]”, conta. “Na área acadêmica, há muito machismo. A gente tá cansada de ouvir relatos de mulheres que não conseguem o devido reconhecimento apenas pelo fato de serem mulheres. Em gastronomia não é diferente. Qualquer lista de melhores chefs e a proporção de mulheres é mínima. É algo lamentável. Quando decidi abrir a sorveteria, ouvi muitas dúvidas de homens próximos de mim sobre a minha capacidade de gerir negócios. Duvidaram da minha capacidade”.
Toque feminino?
Ainda seja uma observação às vezes com viés machista, há algo de diferente nos negócios comandados por mulheres. Na sorveteria, isso é espelhado na administração e no sabor.
“Quando falamos de lideranças femininas, é muito importante a gente representar esse lado feminino no mercado para que as novas gerações vejam que é possível sonhar, que elas também podem. É importante ter essas figuras femininas no mercado, mostrando que somos boas no que fazemos, e até mostrar que podemos ter características diferentes, colocar feminilidade no sorvete, no produto”, explica Márcia Garbin, da Gelato Boutique.
E atrás do balcão? “A gente trabalha muito, a produção é diária, trabalhamos com ingredientes mais frescos. É a habilidade da mulher em conseguir lidar com várias questões ao mesmo tempo. Mais importante do que isso, temos uma visão mais empática. Na última semana, entrevistei uma moça para uma vaga. No final do dia, quando fui falar com ela, disse que precisava me confessar que tinha dois filhos pequenos. Sequer perguntei se ela tinha filhos já que isso não ia prejudicá-la. Percebi a angústia dela em omitir isso por medo”, diz Annaysa. “Imagine quantas situações de preconceito ela já enfrentou só por ser mãe”.