The New York Times De Sydney
No cardápio que chega à mesa ao final da refeição, ele é descrito apenas como "haliote empanado e acompanhamento silvestres".
Mas essas palavras não fazem justiça à deliciosa excentricidade do prato, parte da temporada de 2 meses e meio montada aqui em Sydney, até 2 de abril, pela equipe do Noma, o restaurante de Copenhague famoso por coletar ingredientes nativos e combiná-los em um novo tipo de gastronomia contemporânea.
Clique aqui para ver as fotos em tamanho maior. Mais parecendo um prato típico do Sêder de uma das luas de Saturno, o empanado envolve meio disco, macio e crocante, de haliote (espécie de molusco marinho) cercado por uma série verde de delícias locais – algumas inclusive tão obscuras que a maioria dos australianos jamais pensaria em comê-las. Tem a Hormosira banksii, conhecida aqui como Colar de Netuno (Neptune's necklace), uma alga marinha cujos favos salgadinhos explodem na boca; o caviar cítrico da Austrália, cujas cápsulas minúsculas, como o nome diz, oferecem um sabor azedinho; a Lomandra longifolia, abundante ao longo da costa, parecida com o alho-poró; e até a pinha bunia, que deve ter sido o petisco favorito dos dinossauros, além de outra variedade natural de uma árvore da floresta tropical chamada Athertonia diversifolia. "Aqui tem surpresa, e das genuínas. É o grande diferencial", diz René Redzepi, o chef que transformou o Noma em nome internacional ao longo da última década. Na Dinamarca, Redzepi e seus chefs trabalham com nomes como Michael Larsen, o coletor oficial do restaurante, que cria pratos baseado em ingredientes silvestres da paisagem escandinava. O desafio criativo que ele assumiu aqui é tentar fazer o mesmo com wattleseed (semente de um tipo de acácia), Ranina ranina (um caranguejo local) e a ave aquática Anseranas semipalmata – ingredientes de que, até poucos meses atrás, conhecia muito pouco.
Polinização transcultural. Antes que os céticos de plantão comecem a reclamar de apropriação cultural e de um bando de dinamarqueses "descobrindo" antigas fontes de nutrição, é importante notar que a equipe do Noma é diversa, recheada de talentos de várias partes do mundo: Ásia, América Latina, América do Norte (EUA, ou melhor, Nova York) e a própria Austrália. De uns tempos para cá, esse tipo de polinização transcultural se tornou um objetivo comum nos círculos culinários. Alinea, o restaurante pioneiro de Chicago, recentemente criou um pop-up na Espanha; há várias semanas, o Bo Bech, de Copenhague, comanda a versão temporária de seu "Bride of the Fox" em Nova York; a chef Niki Nakayama, descendente de japoneses, criou uma abordagem kaiseki no n/naka, seu ateliê em Los Angeles, usando a matéria-prima californiana. Para reforçar seu conhecimento sobre as espécies que crescem na Austrália, depois de montar um pop-up semelhante no Japão, em 2015, Redzepi e Larsen se voltaram para a gente da terra – como E.J. Holland, um chef de 23 anos voraz e eloquente que tem a mania de sair correndo para o meio do mato, sem camisa e descalço, com uma faca na mão para recolher ingredientes. Junto com um grupo de aprendizes do Noma – e geralmente em parceria com Larsen –, quase todo dia, Holland levanta antes do amanhecer e passa horas caminhando na região das Blue Mountains, nas encostas cobertas de agrião perto das famosas ondas de Bondi, e nos subúrbios pacatos para recolher plantas comestíveis. "Essas são pimenteiras. Cobertas de pimenta-rosa, ainda por cima", anunciou, acenando com a cabeça na nossa expedição recente, enquanto passava por uma rua qualquer da cidade. Funcho silvestre, limão Aspen, Commelina cyanea, uma erva diáfana chamada aipo-bravo – Holland parece ter o dom de reconhecê-las de canto de olho enquanto dirige. (Uma vez ele descobriu um suprimento imenso de alho selvagem só porque conseguiu sentir o cheiro durante uma corrida na praia.) Encosta a caminhonete no acostamento da rodovia para colher as folhagens que os clientes do Noma muito provavelmente devorarão na mesma noite. "Isto é cambará", reconhece. (No cardápio do Noma, as folhas delicadas acompanham uma torta de vieiras.)
"Está vendo isto aqui? Estas folhas? Esta belezura é o gengibre selvagem", ensina. Estica a mão para pegar um punhado de frutinhas rosa-escuro ao mesmo tempo em que reconhece outra planta ali no acostamento. "Esta é a lilly pilly (Acmena smithii). Para falar a verdade, quase tudo o que tem aqui cresce em qualquer lugar", confessa. Só que crescem em locais de difícil acesso e uma das qualidades de Holland é o conhecimento de onde podem estar esses tesouros ocultos. Quando Redzepi estava procurando espécies australianas, Holland apareceu com a caminhonete lotada de opções curiosas, em quantidades suficientes para cobrir duas mesas grandes depois de desembaladas. Redzepi ficou impressionado; Holland, sem ação. "Ele falou comigo como se fosse meu camarada, o que eu achei bem legal. Tenho os livros deles há séculos. Foi meu mentor antes mesmo de ter a chance de conhecê-lo", conta Holland.Austrália no prato. Há muitos restaurantes australianos famosos – como o Rockpool, Sepia, Bennelong e Billy Kwong in Sydney, além do Attica, em Melbourne – que trabalham com ingredientes nativos, mas Redzepi é dinamarquês (com um pé na Macedônia, terra natal de seu pai) e apaixonado pelas plantas, sementes, nozes, juncos e criaturas marinhas mais antigos. Sem assistência local, a imensidão de um continente inteiro seria, no mínimo, paralisante. "Aqui na Austrália tem muita coisa. É como se a gente levasse as coisas da Dinamarca para o Marrocos, ou para Jerusalém." Aos olhos de Redzepi, o cardápio do Noma Austrália, com sua cota de ingredientes reunidos por Holland e Larsen é, de certa forma, uma homenagem ao povo aborígene que dependia deles. "Eles tinham seu jeito próprio de cozinhar e sobreviveram milhares de anos. Não estamos fazendo nada novo, apenas manipulando coisas que são tão velhas como o próprio tempo", filosofa. Acontece que os sabores e as texturas são novas, sim – e até chocantes – para a maioria da clientela do pop-up.
"Para falar a verdade, é o único restaurante do mundo no momento onde se encontra algo assim. Quais as chances que se tem de provar uma coisa totalmente nova?", conclui Redzepi.