Especial para o Estado
“Quem é do mar não enjoa”, diz o ditado. E não é para menos: diante da biodiversidade marinha, a dieta de pescadores passa bem longe da mesmice do trio camarão-polvo-mexilhão, ainda que esses pescados tenham lugar de destaque nos cardápios. Mas o mar não está só para eles. Caramujos, enguias, lacraias, ouriços e pepinos do mar, entre outros animais comestíveis, enroscam nas redes de pesca com certa frequência, mas boa parte deles não chega às peixarias por não ter valor comercial no Brasil. O que a tripulação não consome volta para a água. Há chefs, porém, que estão de olho nesse descarte.
À espreita de pescadores do litoral catarinense, o biólogo Claudio Tureck, doutor em aquicultura (ciência que estuda o cultivo de plantas e animais aquáticos), vem pesquisando sobre o que chama de Animais Marinhos Não Convencionais (amanc). As descobertas viram conteúdo da disciplina Matérias-primas, que ministra para alunos de gastronomia da Universidade da Região de Joinville (Univille). “A cultura caiçara ajuda a determinar o que é comestível, assim como o histórico de consumo em outros países”, explica Tureck. “Animais desconhecidos vão para o laboratório de análises sensoriais para testes.” Vale dizer: o que não é convencional num lugar pode ser típico noutro.
É desse trabalho, e do que aprende com fornecedores à beira-mar, que Willian Vieira pinça as ideias que põe em prática na cozinha do seu Terroir, em Joinville. Sempre que pode, já que a disponibilidade depende da maré e do que as redes arrastam, o chef prepara a arraia defumada na lenha de goiabeira. Os ouriços, que têm má fama por conta de seus espinhos – apesar de corriqueiros na gastronomia japonesa –, aparecem frescos, com pupunha e vinagrete de pera.
Quando sai para catar ouriços nos costões, aliás, Willian aproveita para colher algumas pancs (plantas alimentícias não convencionais) praianas, que “dão um toque de maresia aos pratos”, diz. Suas preferidas são a erva capitão (parente da salsinha), a orquídea da praia (que tem gosto de pepino), a erva-baleeira (repleta de umami), o bredo da praia (bem salgado, com gosto de água do mar) e o espinafre da areia (mais amargo que o convencional).
Manu Buffara, que cresceu em Santa Catarina comendo o típico arroz de tatuíra – injustamente conhecida como barata-do-mar, dada a aparência desfavorável –, também aproveita a sabedoria caiçara para criar pratos para o restaurante Manu, em Curitiba. Além do caramujo thaís – que usa para fazer um dashi com codium (alga), coentro e dill –, já serviu pepino do mar cru, laminado como sashimi e escoltado por salsa escura de juçaí. “Dá para servir desidratado ou brevemente cozido. O importante é retirar a primeira camada, que é ruim de comer, além dos órgãos internos, e limpar muito bem”, explica.
Na cola do fornecedor
Conhecida por trabalhar com ingredientes não convencionais, Helena Rizzo está sempre em contato com seus fornecedores em busca de novidades para o Maní. Recentemente, foi surpreendida por uma remessa de caramujos de casca lisa, trazida pelo armador de pesca Antonio Amaral. “Nunca tinha visto, achei bem parecido com cogumelo porcini em textura e sabor”, conta. Depois de alguns testes, o caramujo, cozido e grelhado na brasa, entrou para o novo menu-degustação, servido com shiitake, beldroega e consommé de cogumelos com tucupi.
Já o chef Rafael Costa e Silva, do carioca Lasai, cozinha o caramujo na pressão, para driblar a textura “rígida e borrachuda”. O caracol chega à mesa dentro da própria concha, picado e incrementado com beterraba amarela e azeite de capuchinha. O molusco também é fornecido por Amaral, assim como a tamarutaca, também chamada de lacraia-do-mar, e o exótico peixe-trombeta, ambos não convencionais e preparados na brasa. “Tudo o que ele pesca de diferente, pedimos para trazer para o restaurante”, conta Rafael.
A tamarutaca é mais saborosa que o camarão e mais suculenta que a lagosta, mas quem desconhece dá de ombros. Há anos, está no menu do Rufino’s, grelhada com manteiga, mas perde feio em números de pedidos para seus pares. No Mare, do Eataly, ela costuma aparecer no almoço executivo (R$ 38) ou na grillata (R$ 96) de pescados, servida com polenta e emulsão de manteiga com ervas e limão.
Amaral conta que esses frutos do mar vão parar nas redes por acaso, juntamente com a pesca do camarão – o que é classificado como fauna acompanhante. “Na Ásia, esses caramujos são caríssimos. Aqui, como são desconhecidos, voltam para o fundo do mar”, diz. “O mesmo ocorre com o tamboril, o peixe sapo, que não é consumido no Brasil porque é feio.”
Ricardo Magalhães, do Guará Vermelho, que já forneceu lacraia e arraia para restaurantes paulistanos, também conta com a sorte para comercializar esse tipo de fruto do mar. “Eles vêm de brinde no arrasto, mas é difícil ter regularidade e volume”, explica. Por ora, ele aposta na coleta de lambretas (típicas na Bahia e não convencionais em outras regiões). Com a água no peito, o catador tateia o chão com o pé até encontrar o crustáceo, que vai parar no Tuju, de Ivan Ralston, servido dentro da concha com vinagrete de pitanga, batata-doce e coentro.
“Não é só uma questão de sorte, tem que ter bons contatos”, diz Dagoberto Torres, que consegue com Cauê Tessuto, d’A Peixaria, um caracol do mar bem miúdo encontrado em Cananeia. O molusco é cozido lentamente em água aromatizada com alho e ervas e vai para a mesa do Barú Marisqueria escoltado por maionese da casa. “Eu não fico procurando, mas quando aparece algo diferente, a gente prepara e serve.”