Não quero desanimar ninguém, mas conseguir uma mesa no El Celler de Can Roca, que já esteve duas vezes no topo da lista dos melhores restaurantes é quase impossível. Bem, agora que o restaurante catalão passou a segundo na lista, talvez fique um pouco mais fácil, mas mesmo assim...
As reservas abrem com onze meses de antecedência - no primeiro minuto do primeiro dia do mês e, depois de quatro ou cinco minutos, já estão esgotadas. São apenas 60 lugares no salão e, para complicar, o restaurante fecha aos domingos e segundas e na terça só funciona no jantar.
Com tanto tempo de espera entre a reserva e a data da visita, há casos de casais que se separaram, constrangimento de homem que chega com a nova namorada e não encontra a reserva até descobrir que está em nome da ex, e até episódios trágicos de gente que morre antes de conseguir provar o menu-degustação.
No meu caso, soube da viagem duas semanas antes e confesso que joguei pesado: investi em cinco frentes de tentativas, entre elas a Embaixada de Turismo da Espanha, e não havia meios de conseguir um lugar nos dois únicos dias que estaria por ali, no início de maio. Foi então que recorrí a uma amiga querida, amiga também de Joan Roca, e graças a ela, consegui o melhor lugar do restaurante: la barra, o balcão da cozinha.
Foram quatro horas memoráveis entre pratos de sabores fascinantes com beleza de obras de arte e a observação do trabalho meticuloso nas diferentes praças da cozinha. A tranquilidade e concentração só eram quebradas quando o chef-executivo, Ignasi, conhecido como NachoBaucells, cantava os pedidos e a equipe respondia em alto e bom catalão: escoltat (ouvido)! Joan Roca estava em Hong-Kong, mas como os três irmãos Roca fazem sempre, quando um viaja, os outros ficam ali. No caso, estavam o pâtissier Jordi e o sommelier e diretor de vinhos, Josep.
No começo, fiquei sentada no lugar improvisado en la barra, observando os movimentos, os sons e o ritmo do trabalho na cozinha de paredes metálicas e chão preto, com poucos equipamentos de vanguarda à vista -- alguns estão por ali sem muito alarde, os mais revolucionários estão na ala da confeitaria, mas uma parte do arsenal moderno fica do outro lado da rua, onde o restaurante mantém dois laboratórios. No primeiro, o jovem químico Bernat Guixer faz pesquisas com fermentação (provei ali uma espécie de terrine de feijão branco fermentado que tinha sabor de foie gras e frutas e logo pôs Jordi Roca a aventar possibilidades de uso na confeitaria).
Fermentação é o tema do momento nos restaurantes de cozinha contemporânea pelo mundo, porém a maior prova de vanguarda do Celler de Can Roca está no laboratório ao lado, a pequena destilaria em que trabalha um outro jovem químico, Joan Carbó, especialista em essências. Além de fazer licores, aguardentes e destilados variados para os coquetéis do restaurante, ele utiliza um método de extração natural de óleos essenciais para tornar comestíveis produtos que não são, como por exemplo a lã de ovelha ou um livro antigo. Os óleos extraídos são usados em pratos. A essência de lã aromatiza uma sobremesa do menu atual e a essência de livro velho será aplicada num poema de Pablo Neruda, que fará parte da exposição para celebrar os 30 anos do restaurante, no segundo semestre. A mostra De la terra a la lluna, a visão dos irmãos Roca sobre o processo criativo será exibida em Girona e em Barcelona.
Além de estacionamento e dos laboratórios, o terreno em frente ao restaurante tem ainda uma horta, uma ala de reciclagem que está transformando garrafas vazias em louças e uma sala de treinamento em que regularmente os cozinheiros e garçons da equipe têm aulas com biólogos, físicos, químicos, botânicos. Esses conhecimentos são de grande valia durante as viagens-expedição, em que toda a equipe se instala em outro país para tocar um restaurante pop-up durante o mês de agosto, como fizeram na Turquia, em Denver, em Lima, mas também no dia a dia na cozinha. E talvez sejam o treinamento e a coesão da equipe a explicação para a tranquilidade dos 45 cozinheiros que trabalham a todo vapor com a casa cheia,sob a pressão de manter a casa no topo da lista dos melhores do mundo.
Ninguém grita, ninguém corre, ninguém fica parado, ninguém perde o ritmo, não há estresse aparente, apenas concentração e silêncio. Dá gosto observar a atuação. Na cozinha, em vez de uma única boqueta, como é comum, são três os balcões de expedição de pratos, onde o chef checa tudo antes de mandar para o salão. Em cada fase do menu, os pratos saem de uma ala e é ali que o chef se planta, equipado para eventuais ajustes, mas sempre com uma pinça no bolso do jaleco e uma caneta atrás da orelha.
A caminho do salão, os garçons passavam bem na minha frente com os pratos dispostos nos mais variados recipientes, como um bonsai (de verdade) que leva pendurados dois sorvetes de azeitona. Ou o suporte de metal com os cinco primeiros aperitivos da noite, numa viagem gastronômica por cinco países batizada de o Mundo à mesa. São lindas e delicadas miniaturas de sabores instigantes, reeditadas a partir das experiências dos cozinheiros em viagens pelo mundo. Tem causa limeña, pancetta com kimchi, crocante de arroz com molho tailandês, suíno com molho de cerejas inspirado na culinária chinesa.
A segunda rodada de aperitivos vem num pequeno cenário de papel com fotos dos três irmãos Roca na adolescência. O nome da brincadeira é Volta para casa, uma homenagem à mãe Monsté e às receitas do restaurante Can Roca, que ela mantém na mesma rua, onde eles cresceram. Mas os pratos estão desconstruídos. O campari virou bombom cor de rosa, o icônico bacalhau com passas e pinoles foi transformado em espuma…
Terminado o aperitivo, me atrevi a dar uma voltinha. Ninguém se incomodou e essa foi a deixa para eu pegar o celular e sair fotografando, filmando, circulando. Procurei atrapalhar o mínimo, mas o ambiente era tão amistoso que logo me empolguei e comecei a fazer perguntas -- muitas perguntas! Os cozinheiros respondiam atenciosos, sem desviar os olhos dos pratos que estavam montando. Em cada praça, havia um ritmo, uma cadência de trabalho que começava e terminava ao mesmo tempo: todos montando pratos idênticos ao mesmo tempo, com tranquilidade. Cada vez que o maître ou um cozinheiro se aproximava do balcão trazendo um prato, eu voltava correndo para o meu lugar.
Do mar, vieram ceviche de dourada, ostra com alho negro, camarões crus escoltados por katsuoboshi, vinagre de arroz e molho de corais com molho de plânctons, um clássico dos Roca; salmonete em alga kombu, lagostins. Oprato de peixe mais marcante foi a arraia mediterrânea, quase crua, servida com ovas de peixe-espada e delicioso escabeche de pimentão e ruibarbo escalibado (assado na brasa muito lentamente).
Alguns dos melhores pratos da noite faziam o estilo comfort food de vanguarda, grande combinação. Para começar, minúsculos nhoques de gema de ovo, muito delicados com sabor levemente adocicado, servidos com um consomê despejado na hora. A gema é cozida em baixa temperatura ( 65°C, por três horas), antes de ser misturada com azeite e colocada no saco de confeitar para ganhar a forma de nhoque. Teve também um notável prato à base de ervilhas miniatura (são colhidas pequenas), muito tenras com a pele firme, que quase explodiam na boca, espuma de ervilhas e um caldo suíno incrivelmente saboroso. Anotei: todas as vezes que há carnes, em cortes ou como base, os pratos são notáveis.
De fato, merece registro o momento em que as carnes entraram para valer no menu (no meu caso, às 23h05 do dia 10 de maio de 2016). Primeiro, o cochinillo. O leitãozinho passou 24 horas no forno em baixa temperatura e antes de ir à mesa sua pele foi caramelizada. Foi servido com uma versão contemporânea de salada tailandesa de papaia e maçãs verdes, com pimenta e coentro, creme de tamarindo e espuma de amendoim. Espetacular. A pele crocante, fininha, parecia um biscuit. A segunda carne foi inspirada na viagem da equipe à Turquia, cordeiro de leite com berinjelas, grão de bico, pimentão vermelho, rabanete e iogurte. Grande prato, montado como delicada escultura simétrica e colorida. Depois, chega a carne bovina cozida em temperatura muito baixa, por muito tempo (72 horas a 55ºC) -- a brincadeira no caso é servir a carne com a colher, sem faca. Ela vem acompanhada de cogumelos moriles frescos, abacate e um molho de cogumelos espesso e de sabor intenso. Prato impactante, de sabores complexos, arrematado por uma farofinha.
Não dá para dizer que as carnes foram o auge do menu por uma razão: as sobremesas de Jordi Roca foram o ápice, não tenho dúvidas. A primeira, uma das 25 que ele criou inspiradas em perfumes, era um sorvete de rosas, servido com iogurte, açafrão, cominho, canela, pistache e julianas (tirinhas) de rosas vermelhas escuras.
O garçom entregou um papelzinho e deu as instruções: primeiro se come a sobremesa, depois, cheira-se o perfume no papelzinho. A segunda sobremesa era uma jóia, a pérola, clássico de Jordi, que vai passando por pequenas mudanças a cada temporada. É uma pérola de açúcar, grande, soprada como vidro e moldada à mão, recheada com pedacinhos de cupuaçú, açai, cacau, folhas, cítricos, tudo disposto em camadas. A gente só entende o que tem dentro depois de romper a casquinha com cuidado para ir tirando o recheio com uma colher. Leve, linda, surpreendente. E havia mais: a terceira, uma nuvem delicada de leite, doce de leite, sorvete de queijo fresco e algodão doce com perfume de lã de ovelha (aquela da essência do laboratório). Impactante, saborosa.
Por fim, uma caixa de puros, os charutos. É um doce de chocolate que tem realmente o perfume de uma caixa de charutos, chocolate, baunilha, sabores que vão se apresentando aos poucos, em intensidade crescente. A essa altura, a cozinha já está quase toda limpa. Meia noite e quinze.
E nem deu tempo de visitar a célebre adega, aquela que inspirou o nome do restaurante e que tem a fama de ser uma das melhores do mundo. Preciso voltar lá, para a visita guiada pelo Josep Roca, que vai contando sobre os vinhos numa performance que já ficou famosa.
Can Roca
É bem fácil conseguir uma mesa no Can Roca. Sem reservas, a espera leva uns quinze minutos, em média. O ambiente não poderia ser mais simples, com chão de ladrilhos claros, balcão de inox, lambri de madeira e mesas encostadas nas paredes em que atendentes de jaleco preto e idade avançada vão acomodando juntos clientes que não se conhecem.São dois salões, o outro, mais sofisticado mantém o estilo dos tempos em que abrigava o El Celler Can Roca.
A comida é tradicional, reconfortante e deliciosa. Salada de feijão branco com bacalhau, lentilhas com carne de porco, bacalhau com uvas-passas e pinoles, canelones, fideuá...O cardápio muda todos os dias e há sempre duas opções de entrada, quatro de prato principal e as sobremesas, entre elas a imperdível crema catalana muito cremosa, com pouco açúcar e finíssima camada de açúcar vitrificado. O preço do menu é fixo: 11 euros.
Com sorte, vê-se os irmãos Roca no salão. Eles almoçam e jantam na casa todos os dias, assim como os 45 cozinheiros do El Celler de Can Roca, recém-eleito o segundo melhor do mundo (era o primeiro até segunda-feira dia 13 de juho). No caso, a comida de família,como se chama a comida da equipe da cozinha no jargão, é, de fato, a comida da família Roca. Diariamente, os cozinheiros do restaurante premiado caminham uma quadra para almoçar e jantar na casade Montsé Fontané e Josep Roca Pont, os pais de Joan, Josep e Jordi. Quem quiser ver a cena tem de chegar cedo, às 12h eles saem da cozinha do El Celler e sobem a rua, às 12h45, descem. O ritual se repete das 19h às 19h45.
O restaurante tem 49 anos e foi ali que os irmãos Roca cresceram. Aos 80 anos, doce e tranquila, Montsé ainda está na cozinha. O marido, de 83 anos, é quem assume a grelha às sextas-feiras e prepara as carnes para a equipe. Foi dele a ideia de abrir o restaurante. Ele era motorista de ônibus, Monsté era garçonete- “comecei aos 13 anos” -e trabalhava num hotel em Barcelona, quando o marido passou com o ônibus por Girona e viu a placa de aluguel numa casa comercial de esquina, num subúrbio. Ligou para a mulher em Barcelona. “Assustei. Naquela época, não era comum telefonar, quando alguém ligava geralmente era coisa ruim”, conta. Mas era o marido com a ideia do restaurante. Monsté pegou os filhos Joan, de três anos, e Josep, de um ano, mudou-se para Girona e se plantou na cozinha.
“Eu era garçonete, não era cozinheira, mas fazia comida em casa e fui aprendendo”. Os meninos cresceram e ficavam por ali, mas só Joan gostava do fogão. “Aos 12 anos ele disse que queria ser cozinheiro e iria estudar na escola de hotelaria de Girona”, conta. “Josep não sabia o que queria, não dava para nada, ia mal na escola, mas Joan insistiu e conseguiu convencê-lo a se formar sommelier”, diz. A história do caçula, Jordi, foi diferente, ele não ficava muito na cozinha, mas não sabia o que fazer da vida, então os irmãos insistiram para que virasse confeiteiro e o colocaram para trabalhar com o confeiteiro do restaurante, na época, Damien Anjop. “Ele era um alemão muito mal-humorado, ninguém o aguentava, mas um dia ele quebrou as duas pernas e teve de se afastar, então Jordi foi obrigado a assumir a confeitaria, foi assim que ele começou. Depois gostou”, conta Monsté.
Por alguns anos, os irmãos trabalharam no restaurante dos pais até que resolveram abrir a propria casa, em 1991, no imóvel ao lado. No começo, eram apenas Joan e Josep. Jordi se juntou a eles anos mais tarde. “No início não entendi o motivo de fazer outro restaurante, mas eles queriam”, lembra.“Primeiro, eles me davam conta das coisas, me traziam pratos para provar, queriam saber o que eu gostava ou não gostava, hoje nem ligam”, diz com sorriso maroto. Se os netos vão seguir a tradição? “Parece que Marina, de Joan. E um dos meninos de Josep também, pelo menos ele veste o jaleco às vezes, e vai nas viagens com o pai”.