Esquecer de tirar a máscara na hora de provar a comida já virou praxe. Pior é quando o cozinheiro tira a máscara para “ouvir melhor” o que o chef está falando – acredite, acontece. Ao que parece, não foram só os clientes que sentiram na pele as mudanças impostas pela pandemia.
Para entender como opera uma cozinha profissional em tempos de coronavírus, o Paladar acompanhou um dia de serviço em quatro restaurantes de São Paulo: Mescla, na Barra Funda; Ici Bistrô, em Higienópolis; além de Tan Tan e Evvai, ambos em Pinheiros.
As adaptações vão muito além do delivery, que, aliás, mal chegou e já tomou o balcão do Mescla – se esse era o seu lugar preferido no restaurante, esqueça. O chef Checho Gonzales tirou as banquetas do aparador e instalou ali a praça de pedidos para viagem. Em vez de clientes, montes de embalagens, agora biodegradáveis (no começo, lá em abril, Checho precisou improvisar com o que tinha à mão), se aglomeram por ali.
“O jeito de cozinhar não mudou. A comunicação é que ficou prejudicada no começo”, conta Checho. Além de impostar melhor a voz, a equipe precisou apurar os ouvidos e o poder de observação para entender o dito e o não dito por trás de cada máscara e óculos de acrílico. Como não há separação entre cozinha e salão, a música que ecoa das caixas (em alto e bom som) para embalar as refeições dos clientes se soma ao barulho da coifa, das frigideiras, do bate-papo nas mesas… Ao que pareceu à reportagem – que não conseguiu entender nada do que confabulavam durante o serviço –, a sintonia já foi restabelecida.
Com o cardápio reduzido, desde meados de julho é possível provar os pratos do Mescla, como o arroz de camarão com purê de mandioca, cogumelos e azeite de dendê, e os espetinhos de lula e coração de galinha com creme de amendoim e batata, no salão do restaurante. As mesas, outrora compartilhadas, agora sentam apenas pessoas do mesmo grupo, mediante reserva – mas se você estiver passando por ali e der sorte de encontrar uma vaga, aproveite
4 em 1
A cozinha do Ici Bistrô, que até antes de estourar a pandemia, preparava apenas os pratos de sotaque francês do restaurante, desde julho assumiu o seu lado “coração de mãe” e passou a abrigar também o serviço do italiano Tappo – que deve inaugurar salão próprio em dezembro, no andar de cima –, além do delivery de ambas as casas. A dinâmica franco-italiana adotada na cozinha chega aos clientes em forma de cartão frente-verso: com o QR Code para o menu do Ici de um lado e, do outro, o código para o cardápio do Tappo – e, olhe só a vantagem, dá para mesclar seus pratos preferidos de um e de outro na mesma refeição.
Para que essa cozinha quatro em um ande nos trilhos, tudo precisa estar muito bem organizado e planejado para o serviço. Mise en place, ok, divisão de tarefas, ok, praças organizadas e salão afinado, ok. “Se você se perde em uma comanda num dia de movimento, você só vai se achar lá para o final do serviço, e vira uma bola de neve. Não dá para no meio da execução de um prato você perceber que precisa fatiar mais bacon”, conta o chef Benny Novak. Para dar conta de tudo, especialmente dos preparos, o primeiro turno na cozinha começa às 8h da manhã; às 23h30, o último cozinheiro apaga a luz.
É um caos muito bem organizado, mas é preciso estar acostumado com a tensão natural de uma cozinha com filas de comandas acumuladas nos horários de pico. Com o som ambiente – embalado pelo barulho da coifa, do espremedor de suco, do óleo quente recebendo os palitos de batata –, a equipe, mascarada, acaba aumentando o tom de voz. “A mesa nove pediu para avisar que está com pressa”, grita o maître na boqueta. “Avisa que aqui não é pastelaria”, devolvem na brincadeira.
“Alguém traz um copo pra mim, por favor? Eu preciso de um copo”, grita Benny, que chegou para dar “uma passadinha” na cozinha e acabou tendo de soltar os pedidos de suco. “A comanda chegou, eu olhei para um lado, para o outro lado. Todos os cozinheiros ocupados fazendo seus pratos. Eu vou atrapalhar? Lá fui eu espremer laranja. Cheguei meio-dia e só consegui deixar a cozinha às 15h30.”
Chef feliz, cliente feliz
Já no Tan Tan o ritmo é outro. Se antes da pandemia a cena habitual por ali era o movimento frenético de entra e sai de clientes em busca de uma tigela de lámen fumegante, agora o clima está bem diferente – bem mais calmo. A procura não diminuiu (em uma terça-feira comum, todas as mesas estavam ocupadas antes mesmo das 20h), mas agora a dinâmica do salão e da cozinha é outra. Uma paz quase irreconhecível, mas bem-vinda. “O perfil do restaurante mudou, os clientes vêm e ficam, pedem os pratos em etapas, curtem o momento”, conta o chef Thiago Bañares.
E não são só os clientes que estão aproveitando melhor a casa. O chef também comemora a nova fase. “A cozinha ganhou novo ritmo. Aproveitei para fazer as mudanças que sempre quis no cardápio, estou curtindo mais ficar por ali e criar.”
Hoje, quem passa pela porta do Tan Tan encontra o chef sorridente – dá para sacar a alegria por trás da máscara –, trabalhando, tranquilo, atrás do balcão que, assim como no Mescla, também foi tomado, pelas embalagens de delivery no espaço que antes era reservado aos clientes. Sinal dos novos tempos.
No novo normal do Tan Tan, os lámens perderam espaço no menu – mas continuam ali para pratos mais elaborados, que combinam com a nova dinâmica da cozinha e do salão. O kozakana kamameshi, gohan feito na panela de ferro com pescada grelhada, teriyaki e karasumi, aparece no cardápio acompanhado do aviso: tempo mínimo de preparo 20 minutos. O que não parece ser uma questão: durante o serviço acompanhado, o prato foi um dos mais vendidos da noite.
Nova hospitalidade
A experiência em um restaurante com estrelas Michelin passa muito pelo serviço. Como, então, ultrapassar as barreiras impostas pelas máscaras, os nada charmosos frascos de álcool em gel e o distanciamento? No caso do Evvai, a saída foi investir em treinamento e criatividade. Coisa que o chef Luiz Filipe Souza tem de sobra – ele lançou na pandemia o Espresso Oriundi, delivery do sofisticado menu-degustação.
De volta ao salão, o menu ganhou um novo atrativo – não comestível. Uma elegante caixa de madeira chega à mesa com os snacks que abrem o jantar. Dentro dela, estão acomodadas 12 cartas, com breves explicações dos pratos (com desenhos do próprio chef), para serem abertas a cada etapa. “Foi a forma que encontramos para resolver a questão do diálogo entre garçons e clientes, prejudicado pelas barreiras, como máscara e face shield”, revela Luiz. Ao fim do jantar, o cliente recebe uma sacola com as cartas e uma barra de chocolate da casa.
“Elas vão ficar mesmo depois que tudo voltar ao normal. Vimos que é uma ótima saída para passar a nossa mensagem, sem interromper os clientes a cada nova troca de prato.” Mesmo assim, a equipe também recebeu treinamento com especialistas para aprender a falar usando o diafragma para conseguir se comunicar melhor.
As novas práticas também deram outro tom à cozinha, literalmente. A cada hora os cozinheiros trocam as máscaras, personalizadas com logo da casa e com cores predefinidas. Às 20h, se você olhar para o movimento ali dentro, todos estarão de máscara azul. Já às 22h, predomina o verde.
O chef ainda instalou lâmpadas vermelhas no fundo da cozinha para conseguir se comunicar com o pessoal “do fundão”. Um interruptor ao lado da boqueta substitui os gritos abafados pelas máscaras. Outra estratégia, o bom e velho walkie talkie, entrou em cena para ele se comunicar com os seus subchefs e, assim, evitar que eles sintam a necessidade de tirar a máscara para “ouvir melhor”.