Muito se fala sobre como é preciso desmistificar os vinhos, para que sejam popularizados e virem hábito do dia a dia. Concordo com entusiasmo. É maravilhoso beber vinho despretensiosamente no meio da semana. Entretanto, há vinhos que precisam, sim, ser mitificados: ou porque são difíceis de serem produzidos, ou porque são raros, ou porque são muito longevos e evoluem para algo especial e complexo ao longo de décadas. E nada melhor para provar o poder de um vinho que uma degustação vertical, aquela que põe lado a lado diferentes safras de um mesmo rótulo e permite que sua evolução seja estudada. Nesta página, você lê sobre duas delas – a do Amarone della Valpolicella Classico Bertani com quatro safras, e a do Mouchão Tinto, com sete – e fica sabendo um pouco mais sobre outro mito, os vinhos da espanhola Vega Sicilia.
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Amarone della Valpolicella Classico, da Bertani
“Amarone della Valpolicella Classico não pode ser barato. É um vinho que leva tempo para ser feito, e é um investimento. Vendemos depois de 3 mil dias de produção (o que inclui sete anos em tonéis e outros dois em garrafa antes de sair ao mercado) e, se há qualquer problema durante a secagem, um mofo sequer, está tudo perdido”, me disse Stefano Mangiarotti, diretor da Bertani, que faz Amarones desde 1958. Na vinícola, o vinho é feito com uvas passificadas, que são secas em um processo natural sem ventiladores ou aquecedores (há quem use esses atalhos, mas aí o resultado é menos nobre). Todo o teor de açúcar é convertido em álcool na vinificação, o que leva os níveis há quase 16%, sem fortificação. A crítica inglesa Jancis Robinson sugere, portanto, que sejam entendidos como um Porto, consumidos com parcimônia pós-refeição. Perguntei a Mangiarotti se isso seria um problema como é para o Porto, uma bebida de gente mais velha. Ele disse que não, que há um público enorme entre os nerds do vinho. “Há uma nova geração interessada”, afirmou. Um impeditivo, no entanto, é o preço: um bom Amarone gira em torno de R$ 1 mil.
Provei quatro safras do Amarone della Valpolicella Classico Bertani: o 1981 estava quase doce, com toques oxidativos e notas balsâmicos, mas ainda assim, interessante; o 1998 tinha taninos muito presentes, quase mastigáveis; 0 2001 estava balsâmico no nariz e macio na boca, com taninos bem finos; o Amarone della Valpolicella Classico Bertani 2008 (R$ 1.300) ainda muito fresco, com boa fruta e finesse; e o mais jovem, o 2009 (R$ 1.304 na Casa Flora) com fruta bem fresca (cereja) e muita estrutura, além de uma acidez brilhante.
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Mouchão Tinto, da Adega do Mouchão
A Adega do Mouchão é uma das mais antigas do Alentejo e tem, entre suas especialidades, a Alicante Bouschet, casta que faz vinhos robustos porém curtos e que sempre foi uma dor de cabeça para os franceses. Na vinícola portuguesa junto à aldeia de Casa Branca, numa região entre rios e solo fértil (o que é impensado para o bom aproveitamento da videira), ela adquiriu uma expressão maior. Cortada com a Trincadeira, faz vinhos complexos e de altíssimo potencial de guarda, como atestei nesta semana, em prova, ao lado do proprietário Iain Richardson, de sete safras do Mouchão Tinto, que reúne as duas castas, sendo o rótulo mais antigo com 45 anos de idade (1974). Estava vivinho da Silva, aromático (com toques medicinais e ainda muita acidez. A de 1979 era menos aromática, porém com um frescor tão alto que pinicou a língua. A de 1984 era a mais rústica, feita no cenário dramático da ditadura, que feriu demasiadamente a vitivinicultura portuguesa. E essa realidade ficou mais clara ao provar a safra 1989, pós-Revolução dos Cravos, um vinho da nova era: com fruta em geleia e especiarias, delicioso mentolado, e acidez vivaz. O ápice, no entanto, foi o de 1992, com aroma de poejo e fruta, na boca estava vivíssimo, equilibrado e carnudo. O de 1998 mostrou juventude e chocolate, e o Mouchão Tinto 2012 (R$ 451 na Adega Alentejana), um bebê, mas que belo bebê. O importador Manuel Chicau, da Adega Alentejana, brinca que dá 50 anos de garantia para o comprador. “Não damos mais por conta da rolha”.
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Vega Sicilia
Uma aura mágica envolve os vinhos da Vega Sicilia, vinícola espanhola que produz alguns dos melhores rótulos do mundo, como o Vega Sicilia Único Reserva Especial (R$ 4.663 na Mistral a safra 2015), um mix de sutileza e intensidade, como bem marcou Eric Asimov, crítico do New York Times. Para completar são feitos em edição limitadíssima. No último mês, estive com o CEO Pablo Alvarez, que poderia ser um personagem da série Succession, da HBO, em que uma família disputa ferrenhamente o controle da empresa e o legado do pai-fundador (neste caso, ocorreu há alguns anos com o pai dele e pode voltar a acontecer em breve com sua aposentadoria).
Mas para além das intrigas, Alvarez comentou a história e a cada um dos rótulos que faz na Espanha (Rioja, Toro e Ribera del Duero) e na Húngria (Tokaji): Oremus Mandolas Furmint 2017 (R$ 209 na Mistral), o vinho branco seco húngaro com notas de amêndoas torradas, acidez altíssima e leve floral que pode chegar a dez anos de guarda; Macán 2011 (R$ 809,78), elegante caçula do grupo, feito em Rioja em parceria com o Château Lafite-Rothschild, superfloral e fino; o Alion 2013 (R$ 838,89), o mais moderno, com madeira, e adstringência; Pintia 2012 (R$ 534,01), um bebê de vida longa, muita fruta e rusticidade, feito, em parte, com uvas de vinhas que não sofreram com a filoxera; e o Valbuena nº5 2012 (R$ 1.589,02), ícone, uma riqueza de maciez total no ataque, elegância e longevidade. A vontade é de reencontrar alguns desses vinhos (os dois últimos, principalmente) em 20 ou 30 anos. Uma vez, ouvi a sommelière Alexandra Corvo dizer que era um infanticídio abrir o mais recente Vega Sicilia. Concordo com ela. (Os rótulos também são importados pela Grand Cru.)
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