Três cervejeiros assistiam tevê quando viram, em um documentário, cenas da produção da pimenta baniwa – a mescla de pimentas desidratadas e piladas, composta por cerca de 60 variedades de pimentas e sal, produzida pelo povo indígena Baniwa. Ficaram curiosos: como aquele ingrediente poderia ser usado na cerveja? E fizeram um caminho ainda mais curioso: entraram em contato com o Instituto Socio-Ambiental para garantir que o uso da pimenta na cerveja tivesse algum impacto na população que a produz.
Assim nasceu a Baniwa Chilli, saison com só 3,8% de teor alcoólico e adição de suco de abacaxi, hortelã e pimenta baniwa. Na descrição de Vilson Mello Jr., o próprio cervejeiro, é uma cerveja refrescante, frutada e levemente picante. “A pimenta complementa os sabores de hortelã e abacaxi da saison. Além de levemente picante, ela traz um toque salgado”. E com a cerveja, nasceu um acordo raro: 10% das vendas da Baniwa Chilli vão para a Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi).
Mas o que a descrição do cervejeiro está fazendo aqui? Pois é, não dá para provar essa cerveja: ela é irlandesa! Criada pela Hopfully Brewing, teve lote único de 500 litros, vendidos em um evento na cervejaria, em Dublin. Os cervejeiros são brasileiros – e estão doidos para vir brassar a cerveja aqui. Enigma: uma cerveja que leva ingredientes brasileiros e foi criada por cervejeiros brasileiros é irlandesa? O mundo da cerveja tem dessas coisas. Diferentemente da uva, a cevada e o lúpulo podem ser transportados por longas distâncias. Grande parte das cervejas que aparecem aqui são produzidas com ingredientes importados. São brasileiras porque são brassadas aqui.
A adição de ingredientes brasileiros e a busca de um estilo cervejeiro local estão aí desde que a cerveja artesanal brasileira existe, na tentativa de dar à bebida produzida aqui uma cara própria. É só lembrar que todas as cervejas da Colorado – que ensinaram que existia cerveja artesanal sendo feita aqui – levam algum ingrediente local (a pilsen tem mandioca, a IPA tem rapadura, a stout tem café). E quem lembra da Amazon Beer? A paraense anda sumida das prateleiras paulistanas, mas todo mundo já ficou intrigado com a Witbier Taperebá e em 2014, a Açaí Stout ganhou o prêmio de melhor cerveja do Festival Brasileiro da Cerveja (em tempo, a Amazon segue firme e forte em Belém, com a taproom na Estação das Docas).
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É comum o bebedor olhar com desconfiança para esse papo de colocar coisa brasileira na cerveja. O ingrediente em si, é claro, não segura uma cerveja inteira. E assim como tem cerveja boa que leva milho (para horror da patrulha antimilho), tem cerveja ruim que leva lúpulo americano. Você pode estar com o melhor ingrediente do mundo na mão e estragar tudo na hora de cozinhar. Com cerveja é igual. (Por outro lado, dificilmente vai sair alguma coisa que preste da união de ingredientes ruins, não interessa se é panela ou tanque de brassagem.)
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Em todo caso, das primeiras levas de Colorado ao último lançamento no EAP, a cena cervejeira cresceu, ficou mais variada, interessante e ousada. E os ingredientes brasileiros continuam sendo o caminho para tentar dar cara à produção nacional – com muitos resultados incríveis. As frutas e as madeiras lideram a preferência – e o café é um assunto à parte.
Nesta semana, escolhi três bons exemplos de cervejas que trazem ingredientes brasileiros, mas passam longe de qualquer lugar comum.
Morada Cia. Etílica Cupuaçu Sour
Preço: R$ 25 (355 ml) no Empório Alto dos Pinheiros
É sour, mas é saison e leva cupuaçu. Refrescante para chuchu. A textura é cremosa – vem da aveia – e remete à polpa da fruta. Essa “berliner saison”, brincadeira com os nomes berliner weisse (cerveja de trigo ácida típica de Berlim) e saison (de origem belga conhecida por ser ao mesmo tempo refrescante, seca, frutada e condimentada), é uma cerveja esperta – complexa, mas agradável, porque nem todo papo cabeça é chato.
Treze Berlim 01/SP Jaqueira Wood Roggenbier
Preço: R$ 31 (473 ml) no Empório Alto dos Pinheiros
É muito bom encontrar leituras brasileiras de cervejas da tradição alemã. Elas combinam bem com a nossa cultura cervejeira – muitas delas são secas, limpas e leves, boas para embalar a conversa. Essa aqui é assim, mas toda diferente. Para começar, é um estilo raro, chamado roggenbier. Ele é definido pela presença de centeio – que deixa a textura da cerveja mais viscosa e tem um toque picante. A fermentação é com levedura de weizen (aquela que todo mundo conhece pelas notas de banana e cravo), mas como é toda feita em baixa temperatura essas características não aparecem. Resultado: uma cerveja seca, mas encorpada (por causa do centeio), sem ser alcoólica demais (5,8%). Por fim, levou chips de jaqueira na maturação. Ficou assim: ela começa parecendo uma cerveja até que normal, mas é realmente seca e termina com um toque amadeirado surpreendente. Única.