Desde 1º de janeiro de 2020 os produtores de "camemberts genéricos" da Normandia foram proibidos de usar o termo "fabricado em Normandia" em seus rótulos, sob pena de multa e apreensão dos queijos.
Desde 1982, o camembert é protegido por uma denominação de origem controlada (DOP), o que o distingue dos camemberts que não cumprem as mesmas regras. Mas logo em seguida as grandes usinas deram um "jeitinho" e colocaram nos rótulos a frase "fabricado em Normandie", o que acabava confundindo os consumidores.
O processo interno do Instituto Nacional de Denominações de Origem (INAO) na França demorou mais de vinte anos e só foi resolvida agora.
O tradicional camembert de Normandie é um queijo feito com leite de vaca cru, de massa macia, ligeiramente salgado e casca florida. Combina perfeitamente com a cidre, porque a bebida é levemente espumante e vai refrescando o paladar dos sabores super intensos do queijo.
A exigência para ter o título "camembert protegido" é que o leite seja produzido e transformado em queijo na Normandia, com um rebanho com no mínimo 65% de vacas da raça Normande, nativas da região.
A convite do grupo multinacional Lactalis, fui conhecer uma das mais tradicionais fabricações de camembert DOP: o Domaine de Saint Loup, que fica na cidadezinha de Saint-Loup de Fribois. O local é dedicado à fabricação de camembert DOP enformado manualmente, com leite cru de 89 fazendas que rendem 1.250 toneladas por ano.
Foi a primeira vez que o grupo organizou uma viagem para a imprensa e, para minha surpresa, dos 15 jornalistas convidados só aceitamos eu e uma outra colega.
A empresa é conhecida por ter uma relação hostil com a imprensa, não gostam de dar entrevistas para grandes jornais e têm recebido muitos ataques em relação ao pagamento vergonhoso do litro de leite para os produtores (em torno de 250 euros a tonelada) e de não respeitar o meio ambiente (veja matéria do jornal Le Monde). Na visita, só vimos o que o grupo tem de mais tradicional.
O camembert tradicional demora 4 horas para ser colocado na forma. Coloca-se uma concha de coalhada, espera-se 40 minutos para colocar a segunda, sucessivamente até completar 5 conchas e encher a forma. A atividade é penosa e são principalmente mulheres que têm mais paciência, mas é fundamental para o camembert ter essa textura que cola na boca deliciosamente.
Controvérsias do queijo artesanal x industrial
Essa visita me fez cair na real que toda essa discussão de queijo artesanal versus industrial está muito longe de ser simples. A Lactalis é uma das maiores indústrias transnacionais do mundo, com 80 mil empregados em 94 países. Ela faz faz leite em pó, queijo fundido, ultra processado e todas esses produtos lácteos que o novo consumidor consciente do que é comer bem corre léguas. Por outro lado preserva na França modos de fabricação totalmente tradicionais, manuais, com leite cru.
As unidades do grupo que fabricam queijos AOP artesanais e de leite cru geralmente são fábricas compradas de famílias que não tinham sucessores para continuar a tradição queijeira. O que é admirável é que, na maioria dos casos, a Lactalis manteve tudo exatamente igual. Principalmente o nome de cada família, pois as marcas já eram conhecidas pelos consumidores.
Com todas essas aquisições, o grupo não só é o maior produtor de queijo artesanal e de leite cru na França, mas responsável por 95% dos camemberts tradicionais vendidos no mercado.
E, em termos de volume, fabricante de mais da metade de todas as denominações de origem protegida queijeiras: roquefort, saint-nectaire, ossau-iraty... a lista chega a 27 queijos ultra super tradicionais.
Degustação "tour de França" por Xavier Thuret
O melhor momento, depois da visita da fabricação, foi me deliciar na mesa de degustação com todos os queijos DOP de Lactalis na França. O Meilleur Ouvrier de France Xavier Thuret, que representa Lactalis no mundo inteiro, serviu e apresentou os queijos.
Bom, o triste da visita foi não conseguir entrevistar Emmanuel Besnier, o dono da Lactalis conhecido por nunca dar entrevistas. Seu lema é "o bem não faz barulho, o barulho não faz bem".
Numa das poucas entrevistas que deu, ao jornal Figaro, ele justificou: "quero que falem só de meus queijos e não de mim".