Comprar um livro é desses atos de resistência que nos deixam cheios de orgulho. Ir até a livraria, namorar a capa bonita, dar um passeio pelas páginas novinhas, cheirosas de tudo... Se for livro de receita então... Como diria algum passante distraído entre estantes repletas de lançamentos: "eu poderia estar roubando ou dando um google, mas estou aqui, consciente das minhas escolhas, comprando um livro". "Da botica ao boteco", da jornalista, mixologista e pesquisadora de brasilidades, Neli Pereira, é lançamento recente que vale cada segundo de flerte com histórias maravilhosas e receitas de bons drinques concentrados em204 páginas lidas com o entusiasmo de quem prova uma catuaba selvagem e pede bis.
Neli escreve lindamente e conta histórias com a propriedade de quem leu, pesquisou e conversou bastante sobre o assunto antes de colocá-lo no cardápio. É um livro de receitas de drinques sim. Mas também uma aula de história. Uma carta de amor com direito de resposta a tudo o que quase perdemos completamente pelo caminho de nação colonizada, acostumada a negar o nosso em favor do deles, sempre... Nas palavras da autora: "Camomila para acalmar, catuaba para estimular, boldo para aquietar o estômago, louro para prosperar, alecrim para alegrar, arruda para limpar, guiné para proteger. Um vasinho com as sete ervas na frente da casa porque vai que... Uma espada-de-são-jorge sempre é bom ter. E se a zica pegou, melhor benzer. Não tem Brasil sem planta, percebe?"
Temos receitas de banho de cheiro no livro misturadas com receitas de drinques, como o Negroni nativo, e com métodos de preparo: maceração, decocção, infusão... Tudo junto e misturado, como já deveríamos estar acostumados se não nos perdêssemos tanto pelas beiradas. Afinal de contas, sabemos preparar drinques como o Blood Mary e o Negroni, mas na hora de experimentar Mastruz com leite, quero ver quem levanta a mão pra dizer que já se arriscou.
No livro, Neli faz um mix de ficção com realidade. Cita fatos reais às vezes disfarçada de testemunha ocular da história. Em outros momentos, apenas relata os fatos. De uma maneira ou de outra, a autora não desperdiça um único parágrafo em vão. O que torna a leitura do livro uma aula de história que passeia por algumas das nossas mais valiosas tradições. O livro é ainda uma ode aos ramos, às raízes, às cascas como ingredientes de garrafadas, remédios do passado e drinks do momento. "As plantas, renegadas por nossas cegueiras botânicas, são o nosso futuro, caso não terminemos de as destruir no presente", escreve Neli.
Tem história de botica, de boteco, de vendinha, de benzedeira, de jesuíta pegando receita de pajé, de garrafada, de desgustação de cachaça na mesinha de plástico do mercado de frutas.. Olha, tem tanta história nesse livro tão bonito que você, de fato, vai precisar de um drinque para digerir tudo no final.
Da botica ao boteco (Companhia de Mesa), de Neli Pereira, 204 páginas