Se você sempre quis provar a comida da chef Alessandra Montagne, mas ainda não conseguiu ir ao Tempero ou ao Nosso, em Paris, vai ter a chance de provar um menu com a assinatura da brasileira radicada na França em Lisboa. Mais precisamente, no Cícero Bistrot. A estreia é no primeiro dia de novembro e na nossa viagem gastronômica damos alguns detalhes dessa nova empreitada da chef, em primeira mão.
Tive a alegria de falar sobre a novidade durante a entrevista no palco Inter Magazine, durante o Congresso de Cozinha, um dos maiores eventos de gastronomia de Portugal. Como sempre acontece nas minhas conversas com Alessandra, tive que conter as lágrimas durante a entrevista. O tema do evento desse ano era liberdade e foi lindo ouvir o testemunho da chef, que contou como a gastronomia transformou a vida dela e a libertou para o mundo.
E por falar em liberdade, no Cícero Bistrot, ela pôde ousar na nova casa, com a proposta de partir da inspiração no trabalho do artista plástico Cícero Dias, que assina parte da coleção exposta na parede do restaurante, no Campo de Ourique.
"Conhecia pouco do trabalho dele e fiquei encantada com o que vi. É um trabalho lindo, cheio de cores e contrastes e esse foi o ponto de partida para criar a carta para o Cícero", contou a chef ao Paladar. Na nova casa, Alessandra vai manter o diálogo com os pequenos produtores e com a sazonalidade, agora dos ingredientes portugueses. "Os tomates, por exemplo, com tanta diversidade, cores e texturas, são um capítulo à parte!".
Para chegar aos produtores, a chef recorreu ao trabalho ímpar do projeto Matéria, encabeçado pelo chef João Rodrigues, do Canalha, que percorreu Portugal e criou um banco de dados de pequenos produtores que prestigiam a diversidade da matéria-prima lusa. "Fiquei encantada com esse trabalho".
O novo menu do Cícero Bistrot ainda vai ser revelado, mas a chef deu um spoiler, que expressa muito o processo criativo de transpor o trabalho do artista que inspira o conceito do restaurante. "Uma das sobremesas é a Variação de limão com formas geométricas de Cícero Dias. Tem muito da arte dele e dos sabores cítricos de Portugal".
Além dos pratos à la carte, o restaurante também terá menu degustação. Para a estreia no novo menu, o Cícero Bistrot também tem nova decoração e louças e talheres provenientes da França, recomendados pela própria Alessandra.
"É uma alegria estar em um país onde há tantos brasileiros. Sinto-me como se estivesse em um pedacinho do Brasil na Europa, aliado a toda a riqueza de ingredientes que Portugal tem. Estou muito entusiasmada".
Caminhos
O artista plástico Cícero Dias, aliás, tem uma trajetória de carreira parecida com a de Alessandra: nasceu no Brasil, mas desenvolveu a parte mais profícua de seu percurso na França, onde tornou-se membro do círculo de amizades de Pablo Picasso. Tal como o caminho do artista, Alessandra agora deixa um pouco de sua arte em Portugal.
No entanto, quem vê Alessandra com seu sorriso largo e contagiante, talvez nem imagine os percalços que a vida lhe pregou, até que chegasse ao convite de ninguém menos do que Alain Ducasse para manter um restaurante no Museu do Louvre, que será inaugurado em meados de 2025 e ainda tem o nome guardo a sete chaves.
Nascida no Vidigal, no Rio de Janeiro, ela foi entregue ainda bebê aos cuidados dos avós, na pequena Poté, no interior de Minas Gerais. "Meus avós já tinham nove filhos e acabei sendo a décima, em uma família muito humilde", relembra. A vida simples e por vezes sofrida, acabou por moldar o apreço da chef por produtos do campo e pela cozinha de raiz. "Comíamos porco, galinha e tudo o mais que produzíamos na terra".
O contato direto com as coisas do campo gera reflexos até hoje: os produtos usados nos seus dois restaurantes em Paris - o Tempero e o Nosso - vêm de pequenos produtores da região de Paris. "Por isso nosso menu é tão sazonal. Pensamos nele em função dos ingredientes disponíveis em cada época do ano". A mesma filosofia estará no Cícero.
A riqueza de conhecimento da terra e da boa cozinha mineira se contrapôs aos obstáculos na vida pessoal. Sem um olhar mais atento em meio à prole, Alessandra engravidou com 16 anos e foi viver com o pai da criança. "Passei a sofrer agressões psicológicas e físicas. Trago marcas até hoje e todo o sofrimento me faz dar ainda mais valor a tudo que a cozinha me deu".
Quando o filho tinha quatro anos e começava a ter uma percepção mais efetiva do que se passava, Alessandra fugiu para a casa de uma tia, em São Paulo. "Quando minha mãe, que vivia na França, soube do que se passava, propôs que eu mudasse de país e decidi arriscar". Então, arrumou as malas e, mesmo sem falar uma palavra de francês, mergulhou de cabeça na oportunidade que a vida lhe dava naquele momento.
No país que a acolheu, entrou para um curso de francês e à medida que construía seu círculo de amizades, passou a cativar a todos com sua comida afetiva, partilhada nas rodas de conversa. "Fui incentivada a estudar gastronomia e comecei a acalentar o sonho de abrir um restaurante. Juntei dinheiro, fui atrás de financiamento e consegui abrir o Tempero", relembra.
Foi nesse primeiro espaço, que ganhou um novo endereço em frente ao Nosso, o filho mais novo, que os caminhos do aclamado Alain Ducasse e de Alessandra se cruzaram. "Ele provou a minha comida e adorou. A partir dali nos aproximamos e quando surgiu o projeto do Louvre, com outros quatro chefs, veio o convite". Aqui, vale um adendo: os dois restaurantes que mantém no 13º Arrondissement de Paris.
Mas engana-se quem pensa que Alessandra sustenta qualquer tipo de deslumbramento. Para além de Ducasse, a maior alegria da chef foi perceber o reconhecimento do seu talento por meio dos clientes, que têm a chance de provar uma comida cheia de técnicas francesas, mas com toques de incredientes brasileiros. "Na minha vida inteira, nunca tinha recebido elogios como aconteceu por meio da gastronomia. Eu nasci quando me tornei chef. Foi como me libertei e encontrei o meu lugar no mundo". Sim, a cozinha pode ser libertadora!
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