As restrições impostas pela pandemia da covid-19, somadas a uma maior preocupação com a saúde e o meio ambiente por parte dos brasileiros, têm atraído novos empreendedores ao campo e aquecido o turismo local. Bastante comum no exterior, os chamados ‘glampings’ (espécie de camping com glamour) estão emergindo no interior do Brasil como negócio lucrativo e destino para aqueles que querem ficar mais perto da natureza, sem abrir mão de conforto e segurança.
“Não é camping, nem hotel ou resort. O nosso luxo está no mato, na experiência de vivenciar o agroturismo”, diz José Felipe Carneiro, um dos proprietários do Black Mamba Loft. Localizado em Carmo da Cachoeira, Sul de Minas Gerais, a 320 km da capital paulista, o empreendimento conta com três tipos de acomodações no meio da Mata Atlântica, equipadas até mesmo com cozinha, wi-fi, televisão, frigobar e ar-condicionado.
O visitante, além de desfrutar do conforto da estrutura, pode fazer trilhas pela mata nativa, cachoeiras, cafezal e, em breve, pela produção de lúpulo, sem a necessidade de acompanhante. Também não há serviço de hotel no local, por isso é preciso levar a própria comida. Um guia com orientações, dicas de mercados locais e telefones úteis é entregue no ‘check-in’.
“A ideia não é encher a pessoa de atividades. Queremos que ela venha e consiga ler, tocar um instrumento, ouvir o barulho da água e dos pássaros e fazer o que quiser no próprio tempo”, destaca Carneiro. “O ócio é a maior fonte de inspiração. Partir do não fazer nada e estar ali vivenciando a natureza é quando você se inspira e se entende”, complementa Myrela Lage, uma das sócias do projeto, que viu esse tipo de interesse aumentar na pandemia.
Segundo a arquiteta, as acomodações são totalmente independentes e integradas à vegetação natural. Duas foram construídas com estruturas de contêineres pré-moldados e vidros e tem 40 metros quadrados cada. A outra é um casarão reformado, originalmente construído entre 1920 e 1930, o que traz uma mistura do moderno com o clássico.
“Financeiramente falando, o contêiner hoje não difere muito de uma construção convencional, mas é vantajoso, porque é mais fácil de montar e pode ser transportado para outras áreas do terreno. O que encarece são os acabamentos. Pensamos no que era essencial para uma estadia confortável, como bons colchões e lençóis”, explica a também sócia e arquiteta Larissa Antonucci.
Para a construção das hospedagens, foram investidos cerca de R$ 800 mil. “O terreno já era da família. Temos uma expectativa de faturamento anual em torno de R$ 400 mil e uma taxa de lucratividade de até 40%”, salienta Carneiro. As diárias serão a partir de R$ 600 e as reservas poderão ser feitas a partir de março pelo Instagram, Airbnb ou Booking.com.
Na visão do executivo, o glamping vem como um incremento de receita à fazenda, que já é altamente produtiva. “É uma oportunidade de fazer a vida do agro se tornar negócio de turismo também. Um complemento de renda que pode significar até em um aumento de qualidade de vida para quem mora no campo”, sugere.
Nada de ‘perrengue’
Com pouco mais tempo de mercado, a Cabana Home, startup paulista fundada em 2019 e que tem como um dos sócios o ator Felipe Titto, viu o faturamento aumentar durante a pandemia com a maior procura por hospedagens isoladas. A expectativa é que, até o final de 2022, o negócio se expanda para dez novas localizações no interior do Brasil.
O primeiro empreendimento foi construído em 2020, em Araçoiaba da Serra, próximo à Sorocaba, no interior de São Paulo, e contempla seis cabanas distantes 150 metros uma da outra. Em abril, uma nova unidade do negócio será inaugurada em Urubici, na Serra Catarinense.
“Enxergamos a tendência do glamping e a força que esse modelo de hospedagem estava ganhando. É um movimento que leva o cliente a querer experiências únicas, de contato com a natureza e em ambientes autênticos. A busca pelo bucólico”, afirma André Nogueira, sócio-administrativo.
As cabanas são equipadas com TV a cabo, frigobar, fogão a lenha, churrasqueira, banheiro individual, entre outras facilidades. As diárias custam a partir de R$ 1.100 para duas pessoas, a depender do tipo de acomodação, e incluem café da manhã. O local ainda conta com um bar e uma conveniência que funcionam em determinados horários. “Mas não há serviço de quarto. Não somos nem queremos ser hotel”, destaca Nogueira.
Entre os diferenciais do negócio, está a Bolha, uma estrutura patenteada feita com plástico cristal. O valor da diária é de R$ 2.400 e a fila de espera para locação é de três a seis meses. Há também uma estrutura de contêiner montada em uma árvore a nove metros de altura, além de uma cabana subterrânea recém inaugurada.
Segundo Nogueira, os custos com manutenção são relativamente baixos. A construção de uma nova cabana leva cerca de 40 dias e o investimento gira em média de R$ 400 mil a R$ 500 mil. Embora não revele faturamento, ele garante que a margem de lucro do empreendimento é alta.
“A gente brinca que cabana é perrengue chique. É sair dos grandes resorts e levar as pessoas de volta à simplicidade a partir do contato com a natureza, com os animais e com o silêncio pouco encontrado no ritmo de vida atual”, afirma o empreendedor.
Identidade é o diferencial
O argentino Santiago Roig Albuquerque literalmente deu a chave da própria casa para visitantes ao inaugurar o Rancho Punta Blanca há seis anos na Serra da Mantiqueira, próximo ao município de Gonçalves, no Sul de Minas Gerais. O sucesso do empreendimento o levou a abrir, em 2020, um negócio semelhante no terreno ao lado, o Amantikir, com o sócio Rafael Pensado.
O espaço abriga um ônibus e três tendas indígenas, todos equipados com cama, TV, internet, frigobar e banheiro particular. As hospedagens contam com uma casa de suporte, com fogões, geladeiras, lareira, mesa de jogos e até piscina. “Passei dois anos viajando o mundo pra pegar ideias nesse segmento de cabana”, lembra Santiago.
As tendas, produzidas sob encomenda, têm cerca de sete metros de diâmetro e dez metros de altura. São feitas com lona de caminhão impermeável e presas por cabos de aço em cima de uma estrutura de madeira. Levaram cerca de oito meses para ficarem prontas. A diária custa a partir de R$ 1.300.
“É mais rústico, os animais ficam soltos. Não temos serviço e todas as orientações são passadas em vídeo explicativo. O local oferece estrutura para a pessoa fazer o próprio café, almoço e jantar”, explica o argentino, que desembolsou cerca de R$ 2 milhões para a compra do terreno e implementação de toda a infraestrutura. A julgar pelo Rancho Punta Blanca, ele acredita que o retorno financeiro do investimento deve vir no próximo ano.
“Tenho os mesmos problemas de um hotel, de manutenção da estrutura e mão de obra. É preciso disposição para entrar nesse ramo e ter identidade. Se a pessoa entende essa proposta, tem bastante espaço no mercado”, diz.
Viagens ao interior seguem em alta
Os chamados agroturismo, turismo de bem-estar e turismo de ‘escapada’ são tendências que seguem em alta no Brasil e no mundo com a pandemia. De acordo com o World Travel & Tourism Council (WTTC), somente o turismo de bem-estar deve movimentar mais de US$ 900 milhões mundialmente até o final deste ano. A ideia é desfrutar de lugares, situações e experiências que contribuam para um equilíbrio pessoal, antiestresse e bem-estar geral.
“O turismo de escapada, que são curtas viagens em locais próximos ao de moradia para quebrar a rotina, também foi resgatado e bastante valorizado em meio à imprevisibilidade de fechamentos de fronteiras. É uma oportunidade de não deixar de viajar em tempos de incerteza, com riscos menores de planejamento e investimentos emocional e financeiro”, explica Bianca Dramali, professora de pesquisa e comportamento do consumidor da ESPM Rio.
Por causa do fenômeno anywhere office (escritório em qualquer lugar, em tradução livre), acredita-se que as viagens para o interior do País seguirão em alta nos próximos anos. “As pessoas entenderam o valor das pequenas pausas. A tendência do glamping, uma espécie de camping de luxo, que veio da Europa, caiu como uma luva diante dessa maior valorização da conexão com a natureza, do conforto e do bem-estar”, destaca a especialista. “É uma boa oportunidade até mesmo para as agências de turismo.”
De acordo com Sérgio Schneider, professor de Sociologia do Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a insatisfação das pessoas com os grandes centros urbanos, por aspectos como violência, barulho, poluição e estresse, tem motivado essas ‘escapadas’ e o surgimento de novos negócios de turismo no campo.
Há também um fator individual de maior consciência e compromisso com as questões ambientais e a sustentabilidade, por isso uma maior valorização da natureza. Sem contar que a pandemia trouxe à tona uma nova visão sobre a saúde pessoal e o consumo de produtos que reforçam a biodiversidade.
“O indivíduo está mais reflexivo e prefere gastar seu dinheiro com quem está fazendo bem para o mundo. É um novo perfil de consumidor mais ético e responsável. Além do glamping, há outras oportunidades de negócios nos setores de gastronomia, ecoturismo e saúde, como tratamentos de beleza e fitoterápicos, o que tem contribuído para uma maior valorização do campo”, afirma o sociólogo.
Quer debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo? Entre para o nosso grupo no Telegram pelo link ou digite @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.