Prepare o seu paladar: a carne de laboratório está prestes a se tornar uma realidade no prato dos brasileiros. A tecnologia, antes imaginada apenas no desenho animado Os Jetsons, já é desenvolvida por cerca de 70 startups, em ao menos 10 países, focadas em insumos, serviços ou produtos finais, segundo levantamento do The Good Food Institute.
Carne bovina, frango, peixe, camarão. Há empresas que trabalham com a reprodução de células dos mais variados animais, inclusive exóticos, e até mesmo leite materno humano. Engana-se quem pensa que é papo futurístico. Em 2020, ocorreu a primeira aprovação de venda comercial de carne cultivada, em Singapura, na Ásia.
Os números também não deixam dúvidas. No ano passado, os investimentos no setor bateram recorde, totalizando US$ 360 milhões, o que é seis vezes o levantado em 2019 e 72% do valor arrecadado na história da tecnologia (2016-2020).
Ao que tudo indica, o Brasil não ficará fora do mapa do cultivo celular, depois que a BRF e o fundo Enfini Ventures anunciaram, em julho deste ano, investimentos na startup israelense Aleph Farms, conhecida por fazer bifes a partir do cultivo de células animais.
A gigante BRF, ao desembolsar US$ 2,5 milhões, quer disputar um mercado em ascensão e com bastante potencial. Estudo da consultoria norte-americana AT Kearney projeta que a proteína produzida em laboratório deve ocupar 35% do mercado global de carnes até 2040, uma fatia de US$ 630 bilhões num setor que soma US$ 1,8 trilhão.
De acordo com Marcel Sacco, vice-presidente de Novos Negócios da BRF, que espera lançar sua carne cultivada no Brasil a partir de 2024, o foco é o desenvolvimento consistente de tecnologia para a produção de bifes e poder oferecer alternativas a seu consumidor.
“Reproduzir a consistência, a fibra e a experiência de um steak é sem dúvida um estágio mais avançado nesse processo. O desafio é reproduzir todas essas características que o consumidor busca quando consome carne”, destaca Marcel, em entrevista ao Estadão.
Num mercado incipiente no Brasil, a novidade, no entanto, esbarra na falta de marcos regulatórios e de tecnologia, pontua o vice-presidente. A produção desse tipo de carne não leva antibióticos e começa com a obtenção de uma amostra de células de alta qualidade de animais, por exemplo por meio de uma biópsia, sem o abate.
As células são cultivadas em laboratório, por meio de um equipamento chamado biorreator, com o fornecimento de nutrientes e ambiente propício para o seu crescimento. Diferentemente dos transgênicos (geneticamente modificados), a carne cultivada é feita a partir da reprodução de células. Ao final do processo, no microscópio, é possível ver a mesma estrutura de uma carne proveniente do abate de um animal.
O investimento da BRF faz parte da segunda rodada de captações da Aleph Farms, que levantou ao todo US$ 105 milhões, e vem para consolidar a parceria com a gigante de alimentos, anunciada em março deste ano.
Essa é a primeira vez que a BRF realiza uma transação de venture capital, que garantirá o uso da tecnologia. “Agora, criamos laços ainda mais fortes de apoio e suporte ao desenvolvimento dessa produção para trazer mais opções de proteínas alternativas ao mercado”, diz Marcel.
Somando os aportes da primeira rodada, o montante obtido pela startup israelense chega a US$ 118 milhões, vindos de diversas corporações do mundo. Entre as brasileiras, além da BRF, há o Enfini Ventures, fundo de capital de risco voltado ao mercado de proteínas alternativas, que investiu entre US$ 500 mil e US$ 1 milhão.
Os recursos serão usados na execução dos planos de comercialização de carne cultivada em larga escala global, expansão do portfólio em novos tipos de proteína animal e estruturação da planta piloto.
Regulamentação em mercado incipiente
A Aleph Farms foi cofundada em 2017 com a incubadora israelense de tecnologia de alimentos The Kitchen (do Strauss Group) e o Instituto de Tecnologia de Israel. A startup anunciou, em fevereiro, a produção de um bife por bioimpressão 3D e, atualmente, está em negociações com reguladores em vários países para comercializar seus produtos.
Ainda em fase de testes, a proteína cultivada da Aleph poderá chegar ao Brasil também na forma de hambúrguer, almôndegas e embutidos, como salsicha. Porém, por se tratar de tecnologia nova, ainda esbarra em entraves legislativos no País junto à Anvisa e ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
“Todos os mercados estão passando por esse processo agora. Estamos trabalhando para desenvolver o marco regulatório junto aos órgãos do governo, com o apoio de pesquisadores e acadêmicos. Existe uma série de parâmetros que precisam ser criados para poder produzir e comercializar o produto. O próprio nome ‘carne cultivada’, do ponto de vista técnico, não está formalizado”, ressalta Marcel Sacco, vice-presidente de Novos Negócios da BRF.
Há ainda o desafio de mudança cultural, que envolve a educação e a conscientização do consumidor. Todavia, Marcel acredita que será um processo natural de mudança de hábito, assim como ocorreu com as proteínas vegetais, que já fazem parte da dieta de muitos brasileiros, principalmente os flexitarianos.
“O consumidor hoje está cada vez mais ávido por experimentação. Não tenho dúvida de que tem espaço. Mas haverá uma substituição da carne? De jeito nenhum. Como toda tecnologia que surge, a carne cultivada vem para somar, ser uma nova opção ao consumidor e gerar mais oportunidades para empreendedores, trabalhadores, cientistas.”
Didier Toubia, cofundador e chefe executivo da Aleph Farms, afirma que a nova rodada de investimentos deve acelerar ainda mais a produção. “Estamos entusiasmados em unir forças com a BRF. Como um dos maiores produtores de carne bovina do mundo, o Brasil é um mercado estratégico para nós”, disse Toubia ao Estadão.
Brasil no mapa do cultivo celular
O primeiro hambúrguer cultivado em laboratório foi apresentado em 2013 pelo professor holandês Mark Post, da Universidade de Maastricht. Mas foi em 2020, depois da pandemia do novo coronavírus, que o desenvolvimento da tecnologia e investimentos e parcerias no setor aceleraram, tendo em vista uma maior preocupação com a segurança alimentar e a sustentabilidade do planeta.
Fato é que no ano passado ocorreu a primeira regulamentação para a produção e comercialização de um produto cultivado em um país. Singapura, na Ásia, aprovou a venda de um frango produzido pela startup americana Eat Just para um restaurante.
No mesmo ano, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu tornou-se o primeiro chefe de estado a provar um bife desenvolvido a partir de células bovinas, feito pela Aleph Farms. Na ocasião, Netanyahu apresentou um plano nacional para tornar Israel líder global de proteínas alternativas. O país já concentra algumas das principais companhias do setor, como SuperMeat, MeatTech e Future Meat Technologies.
No Brasil, embora a BRF seja a primeira companhia a anunciar a produção de carne cultivada, outras empresas e universidades já estão trabalhando para desenvolver a tecnologia no País, mas ainda não informaram publicamente, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.
“Há uma percepção de que o Brasil estava saindo atrasado no setor. Agora, o investimento da BRF indica o quanto o nosso País também estará envolvido nesse tipo de tecnologia”, afirma Gustavo Guadagnini, diretor executivo do The Good Food Institute (GFI) no Brasil. "A BRF, ao anunciar investimento na Aleph Farms, está se antecipando. A companhia de alimentos não faria isso se não acreditasse que esse é o futuro do mercado de carnes."
O sabor da carne de laboratório
Gustavo Guadagnini teve recentemente a oportunidade de cozinhar e comer um pedaço de carne cultivada em sua própria casa. A peça foi produzida por uma empresa de nome não revelado, por motivo de acordo de confidencialidade. “Era um pedaço pequeno, feito apenas para testes. Coloquei numa frigideira para poder acompanhar bem o processo de cozimento."
Segundo ele, ao fritar a carne, deu para sentir aroma mais próximo de carne animal do que os produtos 100% vegetais. "Foi possível ver a gordura animal soltando aos poucos e derretendo na frigideira, o que não é tão diferente dos produtos vegetais. No final, o sabor era de carne, como esperado. A textura do produto era dada por uma base vegetal, então foi bem similar à de um hambúrguer vegano. Mas foi surreal perceber que eu estava consumindo carne feita a partir das células, sem abate animal. Foi uma chance de ‘provar o futuro’ e ver como nós conseguimos romper limites para produzir alimentos mais sustentáveis e saudáveis."
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