O sustento da família de José Roberto Caldas Pinto, de 58 anos, sempre saiu do mar. Antes como pescador e agora como ambientalista. Conhecido como Zé Pescador, hoje ele devolve ao mar a vida marinha que vem sendo degradada pela mudança climática. Por meio da startup Carbono 14, ele começou um projeto para restaurar recifes de corais nativos na Baía de Todos os Santos, integrando os saberes da ciência e das comunidades tradicionais.
A virada de chave ocorreu após uma indagação da filha ainda pequena, que olhou decepcionada para as ovas de uma lagosta pescada pelo pai. “Ela me perguntou por que eu não deixava os filhinhos da lagosta nascerem primeiro”, lembra. “Eu não queria deixar para minha filha a memória de que eu era uma pessoa que destruía a natureza para viver”, diz.
Foi ali que ele decidiu mudar e encontrar alternativas para manter a atividade da comunidade de forma sustentável. Assim, há 23 anos, Zé atua com educação socioambiental, conservação do meio ambiente e geração de renda por meio de projetos da ONG Pró-Mar, da qual é cofundador. Com a Carbono 14, formalizada em 2018, também oferece serviços de gerenciamento costeiro e estudos socioambientais.
Restauração de corais
Na região onde o empreendedor social atua, que envolve as ilhas de Maré e Itaparica, a espécie de coral Millepora alcicornis, conhecida como coral-de-fogo, está em degradação, principalmente em decorrência das mudanças climáticas que aquecem os oceanos.
“Perdendo esse recife, a gente cria um impacto muito grande para as comunidades tradicionais que vivem da pesca e da mariscagem. Também é um ecossistema que tem uma conectividade muito importante para a sobrevivência da vida marinha”, explica Zé Pescador.
Além disso, o litoral brasileiro sofre com a bioinvasão do coral-sol, espécie oriunda dos oceanos Índico e Pacífico que, incrustada em plataformas de petróleo, foi introduzida no País acidentalmente na década de 1980. Essa espécie degrada a biodiversidade nativa e não tem finalidade de consumo.
Assista como o trabalho é feito:
Zé Pescador buscou meios de conter e aproveitar o animal invasor. Em 2019, um teste foi triturar o coral-sol in natura, misturar com cimento e, usando embalagens cartonadas como fôrma, fazer pequenos blocos que serviriam como sementeira para cultivar a millepora. Tanto os corais quanto o cimento têm carbonato de cálcio na composição, o que viabiliza a mistura.
Assim nasceu o projeto Corais de Maré. “Pegamos fragmentos do coral-de-fogo, colocamos na sementeira, fixamos com lacre de nylon e colocamos no mar. Quando voltamos, um mês e pouco depois, para nossa surpresa, o coral tinha se fixado nessa base e começado a se espalhar. Ele cresceu sobre o plástico também e ganhou altura”, explica.
Essas sementeiras ficam em placas de cerâmica ou são fixadas numa estrutura de PVC, os berçários, no fundo do mar. Depois que o coral ganha altura, em cerca de quatro meses, elas são transferidas para os recifes. Assim, a proposta é que o ecossistema seja revitalizado periodicamente, contribuindo para reduzir a degradação.
Ciência aplicada
Quando Zé Pescador viu os resultados dos testes, enviou fotos para Igor Cruz, pesquisador de ecossistemas costeiros e professor na Universidade Federal da Bahia. Ambos se conheceram em 2007, quando o cientista estudava recifes de corais no mestrado. A hipótese levantada foi de que o nylon tinha servido como um esqueleto para o coral, acelerando seu crescimento.
Agora, eles investigam juntos a capacidade de outros elementos, como polietileno e PET, para agilizar o desenvolvimento da millepora. Diferentes materiais já foram testados, como arame, cerâmica e vidro, conta o pescador. E ao unir ciência e sociedade, pescadores da Ilha de Maré e Ilha de Itaparica, que reservam berçários de corais, participam da construção das sementeiras e contribuem com a técnica.
“O projeto ainda está em fase experimental, mas a proposta é tentar fazer algo descentralizado. Se conseguirmos que atores de diversas comunidades possam ter sua própria iniciativa e fazer disso uma fonte de sustento ou de complementação de renda, seja por captação de recursos doados ou por uso turístico local, cremos que a restauração será mais eficiente”, diz o pesquisador.
Eu não queria deixar para minha filha a memória de que eu era uma pessoa que destruía a natureza para viver”
Zé Pescador, cofundador da Pró-Mar e fundador da startup Carbono 14
Como o projeto começou esse ano, ainda há um longo caminho a ser percorrido. “Trabalhamos apenas com uma espécie das cerca de 23 que temos no Brasil e, além disso, a restauração deve ser trabalhada para além do transplante de corais”, explica Cruz. Outras técnicas precisam ser desenvolvidas para avaliar qualidade da água e condição bacteriana do local, por exemplo.
“De qualquer forma, nosso objetivo é restaurar os recifes. Começamos pela Baía de Todos os Santos, mas esperamos que, se tivermos sucesso, o que estamos desenvolvendo seja usado em outros locais, não só do Brasil como do mundo”, afirma o professor, que também visa a produção científica a partir do projeto.
Um dos planos é avançar com tecnologia. O pescador quer comprar uma impressora 3D para modelar um coral, com cerca de 20 centímetros de altura, feito com aquela mistura de coral-sol triturado e cimento. “Quando eu colocar o fragmento do coral nativo ali, a ideia é que ele vai mimetizar toda a estrutura e creio que vai desenvolver muito mais rápido e será muito mais eficiente do que o próprio plástico”, explica.
Empreendedorismo socioambiental
A sede da Pró-Mar está no município de Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, local onde o turismo é forte, mas carece de melhor infraestrutura, avalia Zé. “A gente sempre fomentou a atividade do turismo ecológico como uma alternativa bastante viável para o desenvolvimento local, porque a ilha tem poucos roteiros consolidados, poucos serviços, então o turista permanece por pouco tempo”, diz.
Por meio da ONG, ele já desenvolveu projetos de ecoturismo, formação em mergulho e educação ambiental, cujo financiamento veio de uma grande empresa. Mas como a proposta é ter algo perene, que gere também emprego e renda para a comunidade, depender de projetos pontuais é insustentável.
Como consequência, a Carbono 14 vem como um braço empresarial da organização para transformar em negócio a atividade do turismo ambiental e científico. “É uma coisa que está em desenvolvimento, se aprimorando. Creio que daqui até o verão, a gente vai estar bem organizado, muito bem capacitado para fazer esse trabalho”, projeta.
A proposta é oferecer aos turistas uma experiência completa: a construção das sementeiras, a fixação do coral, o mergulho até o berçário e a transferência do coral crescido para o recife. Enquanto o roteiro é preparado, qualquer pessoa pode adotar um coral por meio do site da empresa e contribuir financeiramente com o trabalho de conservação dos recifes. Clique aqui para saber mais.
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