Como a maioria dos empreendedores, Adriana Barbosa precisou recalcular a rota em tempos de novo coronavírus. O desafio é que ela trafega por vários caminhos e suas escolhas não impactam somente em seu negócio. Criadora da Feira Preta - evento realizado há 18 anos e considerado uma das maiores feiras de negócios e cultura negra da América Latina - e do Preta Hub, braço de pesquisa e capacitação que roda o País, Adriana é um dos principais nomes que ecoam e apoiam os empreendedores negros no Brasil.
Ao lado de outras organizações de apoio ao afroempreendedorismo - Vale do Dendê (Salvador), FA.Vela (Belo Horizonte), Instituto Afrolatinas (Brasília), Agência Popular Solano Trindade e Afro Business Brasil (ambos de São Paulo) - Adriana já deu um dos passos para conter os impactos econômicos devastadores nesses negócios.
Juntos eles formam a Coalizão Éditodos e acabam de criar um fundo emergencial para apoiar financeiramente os negócios que participam de suas redes. Com apoio de Itaú Unibanco, Assaí Atacadista e Instituto C&A, cerca de 500 empreendedores receberão até R$ 2 mil para enfrentar o período de isolamento social. A prioridade é apoiar mulheres negras, com uma linha de apoio focada apenas em empreendedoras negras com idade acima de 60 anos. O canal para que os empreendedores possam se inscrever ainda não está disponível e deve ficar pronto nas próximas semanas. Acompanhe o site da Coalizão Éditodos para mais informações sobre o processo seletivo.
Em entrevista ao Estadão PME, Adriana conta que adiou a abertura do espaço físico Preta Hub na cidade de São Paulo, programada para este mês de abril, e diz que as iniciativas público e privadas para ajudar os nano e microempreendedores ainda não estão organizadas estrategicamente para funcionar de forma sistêmica, ou seja, apoiar todas os agentes das redes de fomento ao pequenos negócios. Confira o papo abaixo.
Como foi a criação desse fundo emergencial da Éditodos?
Em janeiro deste ano começamos a fazer o planejamento da coalizão para construir a teoria da mudança com foco no impacto econômico na população negra e periférica. Quando tudo mudou por conta da covid-19, a gente decidiu criar um fundo de emergência para apoiar nanos e microempreendedores que nos procuram por conta dos nossos programas de formação e aceleração, cada uma das organizações tem relação com muitos empreendedores em território nacional.
Não serão todos que poderão receber o apoio financeiro. Quais são os critérios para a seleção dos empreendedores?
A gente tem olhar prioritário em mulheres negras empreendedoras porque elas estão na base da pirâmide. A gente também vai ter uma linha focada em mulheres acima de 60 anos, recebemos um aporte para focar especificamente nesse público. Fizemos uma pesquisa com os empreendedores e muitos estão dentro das áreas de moda, gastronomia, setor de serviços, principalmente estética e beleza, e economia criativa.
Especificamente sobre a rede de empreendedores da Feira Preta, quais são as principais necessidades deles nesse momento?
Percebi três principais demandas das pessoas que nos acionam. A primeira é a financeira. ‘Como é que eu pago as minhas contas?’. A segunda está em uma dimensão mais subjetiva, ligada à saúde mental. Muitos relatam que estão em desequilíbrio, que precisam de ajuda para lidar com essa situação. E a terceira é a digitalização dos negócios. Em uma pesquisa para o fundo da coalizão Éditodos a gente viu que boa parte dos empreendedores está na área de gastronomia. Perguntamos quem usava as plataformas de delivery e mais de 70% não usa nenhum tipo de aplicativo.
E de que forma você está conseguindo ajudá-los?
Estou fazendo mentorias de forma individualizada, buscando caminhos junto com o empreendedor de uma forma efetiva. O que dá certo para você? Às vezes não é montar um e-commerce, porque tem que gerar estoque e entender como faz a gestão de um negócio do tipo. Mas pode ser, por exemplo, entender ao máximo como funcionam as ferramentas de venda do Instagram, trazer parceiros de entrega, entre outras coisas.
Qual será a pior consequência do coronavírus no ecossistema empreendedor?
É um cenário bastante assustador. Uma reflexão que eu venho fazendo é que quando você olha para esse contexto e vê as ações que estão acontecendo, elas ainda são polarizadas. Ou eu apoio as grandes empresas, por exemplo o perfil das companhias aéreas, ou eu apoio o público Bolsa Família. Entre as grandes e o Bolsa Família você tem uma lacuna muito grande de público que não está sendo assistido por nada, por nenhum tipo de programa.
Outro ponto é que se fala muito em apoio na base, mas para que o dinheiro ou a cesta básica chegue a esse público você precisa das lideranças comunitárias ou de organizações que atuam no meio e fazem a ponte entre quem quer doar e quem está na ponta. E os apoios que estão acontecendo não estão olhando para isso. Se pede para a liderança mapear as necessidades, mas a própria liderança não está conseguindo pagar as suas contas. As coisas não estão sendo feitas de forma sistêmica e estratégica. É tipo uma engrenagem em que cada peça tem uma função. Se você não fortalece o papel do intermediário, você enfraquece a rede a longo prazo.
Quais as principais dificuldades que você, como agente intermediária de apoio a uma rede de empreendedores, tem nesse período?
Quando eu olho para as linhas de crédito, por exemplo as do Desenvolve SP, que são ótimas, eu vejo critérios impeditivos para conseguir como não ter seu nome negativado. Quem hoje não vai ter nome negativado? Não tem como usar as mesmas regras que se usava nesse contexto que a gente está vivendo. É preciso flexibilizar. Fui participar de um edital da iniciativa privada e a ficha de inscrição que recebi é uma ficha padrão de empresa que não cabe para uma instituição de impacto social. É importante adaptar as ferramentas. E não é um contexto vulnerável apenas para um público, é vulnerável para o sistema todo.
Como negócio, quais os principais impactos econômicos da covid-19 na Feira Preta?
A gente tinha acabado de empreender em um novo negócio, que é o espaço físico Preta Hub de economia compartilhada. É um misto de loja, cozinha e coworking em 500 metros quadrados localizado no Anhangabaú (região central de São Paulo) e que está parado. Que venham os meses de junho e julho, quem vai ter dinheiro para alugar um espaço agora? Para esse ano, eu não consigo ver futuro para a Feira Preta se não for seguir pela lógica de investimento de doadores, que ajude a minha organização enquanto intermediária a passar por essa tormenta.
Da mesma forma que eu estou olhando o empreendedor e quero dar suporte para ele, alguém vai ter que olhar para a minha instituição e me dar suporte. Senão fica incoerente eu falar em dar dinheiro para o empreendedor, mas nem eu estou conseguindo pagar as minhas contas. Eu, sozinha, não vou conseguir. Uma das coisas que o Éditodos vai fazer agora é um advocacy no mercado para fortalecer instituições intermediárias e lideranças comunitárias.
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