Até meados de 2019, existia apenas um modelo de franquia do lava-jato DryWash. Quem quisesse comprar uma unidade da marca, desembolsava cerca de R$ 300 mil, alugava um ponto e contratava funcionários para prestar os serviços, que vão desde a lavagem a seco de carros (especialidade da empresa) à aplicação de películas nos vidros. A partir daquele ano, porém, a companhia introduziu uma nova categoria: a de microfranqueado individual.
Neste modelo, o lavador de carros deixa de ser um funcionário e passa a ser um franqueado. Ele não trabalha mais para uma unidade da empresa, mas fecha contratos de prestação de serviço com outros franqueados, donos de unidades da DryWash. Os custos com treinamento, produtos e deslocamento ficam na conta dele, assim como o pagamento das taxas referentes à franquia (que podem ser parceladas e diluídas de seus ganhos). Em contrapartida, tem autonomia para definir seus horários e oferecer serviços para outras empresas e pessoas, além de pagar menos impostos, já que opera como microempreendedor individual (MEI).
Modelos parecidos com esse têm crescido no País e tornado cada vez mais cinzenta a linha que diferencia funcionários de microempreendedores. A segurança jurídica dos contratos de microfranquias chegou a ser discutida em um recente encontro da Associação Brasileira de Franchising (ABF). Isso porque franqueadoras têm sido alvo de processos trabalhistas, onde são acusadas de utilizar os contratos de franquia para mascarar relações de emprego.
Segundo levantamento da empresa de seguros Prudential, apresentado no evento da ABF em março, há mais de 2,5 mil processos trabalhistas em curso no País, onde se discute possível vínculo empregatício nos contratos de franquia.
Frente a essa situação, as empresas afirmam que a relação entre franqueadores e franqueados baseia-se na transferência de conhecimento de negócio e na utilização da marca, o que seria respeitado nos contratos de microfranqueados, seguindo a lei de franquias. Criada em 1994 e atualizada em 2019, a legislação menciona que não há vínculo de trabalho entre franqueadora e franqueado.
ABF diz que tudo é franquia, independente do tamanho
O posicionamento apresentado pelas companhias é o mesmo da ABF. “Se sou um gerente de uma loja, sou funcionário. Mas se eu me tornar dono, a atividade exercida continua a mesma, apesar de não se parecer com a natureza jurídica”, afirma Sidnei Amendoeira, diretor jurídico da entidade. “Se eu lhe dou uma marca, com know-how, manual, supervisão e não tenho com você uma relação de subordinação, isto é franchising. A ABF é contra qualquer tipo de fraude”, afirma. A associação, porém, não comenta casos específicos referente a modelos adotados por marcas.
O termo microfranquia é mercadológico e utilizado para se referir a operações com investimento inicial de até R$ 135 mil. Apesar disso, existem opções com investimento inicial abaixo de R$ 5 mil, que não exigem contratação de funcionários, tampouco uma unidade física.
Na DryWash, por exemplo, o investimento inicial é de cerca de R$ 4 mil. Contudo, não há diferenciação legal entre essa modalidade e as franquias mais caras.
“Ele é empresário e ponto. Está utilizando know-how de uma marca franqueadora, operando por meio de uma ‘bandeira’, e também tem autonomia para atuar”, diz Lito Rodriguez, fundador da DryWash, sobre o modelo adotado pela empresa.
Ele afirma que os ganhos dos microfranqueados individuais podem chegar a duas vezes o dos profissionais contratados nas unidades, considerando um período de trabalho igual.
“É como o entregador de delivery, que é um empreendedor. Ele compra uma moto, tem a própria infraestrutura e gestão sobre o seu trabalho. No nosso caso, temos segurança, porque existe uma lei própria para as franquias, que já é consolidada”, afirma Rodriguez, que também abriu uma consultoria para ajudar outras empresas a adotar o modelo desenhado por ele.
Microfranquias são questionadas na Justiça
A Prudential também expandiu suas operações com um modelo parecido com o da DryWash. Existem os microfranqueados da marca, que são corretores, e franqueados maiores, que ajudam no treinamento e suporte.
Os corretores vendem os seguros da Prudential e de parceiros, além de outros serviços que tenham licença para comercializar. Para usar a marca, eles pagam royalties à empresa, além de um investimento inicial de cerca de R$ 30 mil.
“O franqueado é dono do negócio. Ele não tem exclusividade na venda do produto, tampouco de atividade empresarial, e tem total autonomia para tirar férias ou decidir os dias em que irá trabalhar. E, juridicamente falando, há uma diferença muito grande, porque há uma subordinação empresarial — que é diferente da subordinação do trabalho —, já que ele precisa observar alguns padrões da franquia”, explica Pedro Mansur, diretor jurídico da Prudential do Brasil.
O modelo de franquias da empresa foi alvo de duas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), onde o órgão acusava a Prudential de usar os contratos de franquia para mascarar relações empregatícias.
A disputa, que começou em 2010, só terminou no início deste ano, após mudanças no modelo adotado pela empresa e na jurisprudência envolvendo o tema. O acordo que encerrou os processos obrigou a companhia a depositar R$ 6 milhões em um fundo de apoio aos direitos dos trabalhadores.
O que os tribunais locais e o STF pensam sobre o tema é diferente
A mudança de entendimento também tem afetado outros processos que alegam vínculo empregatício nas franquias. “Hoje a grande discussão é onde se aplicariam as leis da CLT e onde se aplicariam as formas alternativas de trabalho. Essa é a grande disputa entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e os tribunais locais do trabalho”, afirma o advogado trabalhista Arthur Brant de Carvalho, que atua com alguns microfranqueados em casos contra a Prudential.
Um deles chegou a ser analisado pelo Supremo, mas Carvalho não comentou o caso, alegando que o processo ainda está em andamento; seu cliente não quis conceder entrevista.
Em geral, o STF não tem reconhecido vínculo de emprego nesses casos, alegando que a reforma trabalhista, aprovada em 2017, prevê a terceirização de atividades-fim e que os contratos não desrespeitam a lei do setor.
Segundo Carvalho, porém, este não seria o caso. Ele diz que seus clientes não podiam contratar funcionários, tinham obrigação de ir até a empresa e tinham metas para cumprir. “Esse tipo de conduta extrapola a lei de franquias”, defende o advogado.
Reforma trabalhista permite a terceirização
Em nota, a Prudential afirmou que as ações do MPT foram ajuizadas “quando vigorava uma legislação trabalhista que, por exemplo, impedia a terceirização”.
Segundo a empresa, as mudanças em seus contratos de franquia “estão de acordo com o contexto mercadológico atual e ambiente legal” e que as decisões favoráveis à empresa no TST e no STF são prova da legalidade do modelo.
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Discussão sobre microfranquias faz parte de debate sobre formas alternativas de trabalho
Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o modelo de microfranquias adotado por algumas empresas pode extrapolar o contrato de franquia e até mesmo ser caracterizado como fraude trabalhista, mas os casos devem ser analisados individualmente para se chegar a uma conclusão específica.
Essa discussão se insere no mesmo contexto de outros debates que envolvem formas alternativas de trabalho, que não a regida por meio da CLT.
“É muito comum se avaliar se essa pessoa recebia ordens para caracterizar subordinação, mas também se era fiscalizada e punida, caso não fizesse alguma coisa”, afirma Olívia Pasqualeto, que é professora de Direito do Trabalho e Previdenciário da FGV Direito SP.
Ela diz que é a reunião desses indícios que leva a Justiça a definir um possível caso de vínculo de emprego, mas que cada caso deve ser analisado individualmente.
Para além desses indícios, a diferença de interpretação sobre o tema entre tribunais regionais do trabalho e o STF explica a grande quantidade de casos judicializados.
“Não importa a segmentação profissional, seguindo literalmente essa lógica do Supremo, eu consigo transformar toda e qualquer prestação de serviço que hoje é de vínculo de emprego numa prestação de serviço de natureza civil”, afirma Ricardo Calcini, advogado trabalhista e sócio da Calcini Advogados. “Você começa a ter instrumentos legais para justificar essa roupagem para um contrato que pode ser de terceirização, franqueado, PJ”.
Duas categorias de trabalhadores, e uma teria mais privilégios
Apesar da necessidade de adaptar o direito do trabalho às novas dinâmicas do mercado de trabalho, uma leitura mais abrangente como essa pode criar distorções.
“A forma como o nosso direito do trabalho está estruturado acaba criando duas categorias: o empregado, que tem todos os direitos, e uma outra, que engloba todos que não são empregados, com algumas exceções”, diz Pasqualeto. “O que acontece é que essas outras relações também são assimétricas”, defende.
Governo pode perder receita
Para Janaína Feijó, que é pesquisadora do FGV Ibre e estuda a expansão da utilização do programa de microempreendedor individual no País, as microfranquias, quando criadas por MEIs, colaboram para uma distorção que gera redução de receita para o governo.
“Embora juridicamente essa relação seja possível, em termos econômicos isso também gera distorção, porque se paga menos impostos, já que o MEI é um programa muito subsidiado”, afirma.
Ela menciona que a criação do programa visava regularização de trabalhadores informais, que gerassem pouca renda, e não numa alternativa mais barata para profissionais liberais com rendimento mais alto.
“Ao longo do tempo, as pessoas têm recorrido a ser um MEI não por conta de empreender, mas porque é a única alternativa de continuarem atuantes no mercado de trabalho”, afirma.
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