Para Quézia Queren Marsola, de 39 anos, vestir roupas que respeitassem os preceitos da igreja evangélica nunca foi uma obrigação, mas sim uma escolha. O único problema é que ela não gostava das opções disponíveis no mercado. Na adolescência, pedia para as costureiras alterarem alguns detalhes, com drapeados, bolsos e comprimentos diferentes.
Já na vida adulta, decidiu que era hora de ajudar outras mulheres que tinham o mesmo problema e fundou a Querem Vestidos, em 2016. Inicialmente, ela vendia para amigas e conhecidas, mas com o comércio eletrônico, conseguiu ampliar a cartela de clientes para todo o País. Há dois anos com uma loja física em Santo André (SP), a Querem Vestidos fatura em média R$ 120 mil por mês com a moda “modesta” - como é chamado o estilo com comprimentos mais longos e caimentos menos apertados.
Mudanças nas roupas eram feitas por tia e avó de Quézia
Natural de São Francisco (MG), Quézia frequenta a Congregação Cristã do Brasil (CCB) desde a infância e nunca se opôs às regras em relação à vestimenta, mas também não gostava das peças mais comuns, como saias jeans longas, camisetas e boleros.
“O bolero é o meu maior trauma. A gente entrava nas lojas e nunca encontrávamos roupas com manga, então colocávamos o bolero por cima. Não éramos um público visto pela moda”, afirma.
Para contornar o problema, ela sempre sugeria mudanças para a tia e a avó. Se o vestido era bonito, mas não tinha manga, elas colocavam. Se o comprimento ou caimento incomodavam, elas cortavam, mas sem deixar curto ou justo. Enfeitavam com pedras, babados e drapeados para deixar o modelo jovial.
Começou a vender roupas após ficar doente
Com poucas oportunidades de emprego na cidade às margens do rio São Francisco, Quézia veio para São Paulo aos 16 anos. Além de estudar, ela trabalhava como faxineira.
“Quando você é muito pobre, entende que não tem escolha. Eu sabia limpar a casa e fui, mas o preconceito era desafiador, por conta do sotaque e do jeito de ser”, conta.
Já casada, em 2016, ela passou por um momento difícil com problemas de saúde. Para contornar a situação, o marido sugeriu que ela vendesse algo, já que sempre teve tato com o público. Quézia conta que não teve dúvidas de que trabalharia com roupas, sua antiga paixão.
A mineira fez algumas pesquisas e percebeu que as opções na região do Brás, um dos principais centros comerciais do Brasil, eram limitadas. Após encontrar fornecedores que tinham modelos diferentes, ela abriu a Querem Vestidos, investiu R$ 3,5 mil em peças e vendeu tudo em uma semana.
O problema é que ela vendeu fiado, ou seja, não recebeu nenhum dinheiro e ficou sem capital de giro para renovar o estoque. A solução foi vender o carro para comprar mais roupas e retomar o negócio. “As comunidades das igrejas são próximas, eu conheço muita gente. Passava por vários pontos e todos os produtos iam embora em um final de semana”, explica.
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Entrou no comércio eletrônico para fugir do fiado
A certa altura, Quézia tinha 89 clientes que só compravam fiado, mas percebeu que essas pessoas usavam o cartão de crédito em lojas maiores. Ela viu no comércio eletrônico e nas redes sociais um caminho para mudar esse cenário.
Primeiro, fez um site para as vendas. Depois, para atrair novos consumidores, fechou uma parceria com a influenciadora digital Renata Castanheira, conhecida como Crente Chic, que tem mais de 500 mil seguidores no Instagram e produz vídeos provando roupas de moda modesta.
“Escolhi três vestidos que tinham um bom estoque no fornecedor para mandar para a Renata, porque, se precisasse, teria como repor. Depois da publicação dela, vendi mais de 30 peças de cada modelo”, conta Quézia.
A parceria com influenciadoras se tornou um dos pilares da marca, que busca por perfis variados para atrair públicos distintos.
Abriu loja física para ganhar credibilidade
Apesar do sucesso na internet, Quézia ainda tinha um grande desafio: conquistar a confiança dos clientes. Ela afirma que alguns tinham interesse nas peças, mas desistiam da compra por medo de sofrer um golpe. Para ganhar credibilidade, ela decidiu abrir uma loja física em 2022.
“Escolhi o shopping porque ele funciona como um guarda-chuva para a empresa, evita a desconfiança dos consumidores. Mas procurei por um que fosse próximo a linhas de transporte público, para facilitar o trajeto para quem vem de longe”, explica.
O maior desafio no novo empreendimento foram os impostos, que são diferentes dos do comércio eletrônico e assustaram Quézia no início. Além disso, a Querem Vestidos levou quase dois anos para fidelizar clientes no ponto físico.
A mineira afirma que metade das mulheres que frequentam a loja não é evangélica, mas gostam de peças recatadas para trabalhar. Ela acredita que o movimento tenha relação com o crescimento da moda modesta entre famosas.
“Hoje em dia as pessoas veem a Silvia Braz (influencer) e a Meghan Markle (esposa do príncipe Harry) com saias e vestidos modestos e acham lindo, mas o evangélico sofreu muito para romper a barreira do que era estiloso e não ser tachado como brega”, reflete.
Fabricação própria ajuda a inovar
Algumas peças são compradas de fornecedores que vendem para diversas lojas, mas a maior parte é feita por parceiros com exclusividade para a Querem Vestidos, com base em referências que Quézia busca no mundo da moda, mas adapta para as necessidades das suas clientes.
No geral, as roupas não têm decotes profundos e cobrem braços e pernas, mas não há uma regra universal de vestimentas evangélicas, o que permite inovar para agradar a todas.
“Eu fujo do estereótipo criado em cima do cristão, da caricatura que algumas pessoas apontam, aquilo não nos representa. Nós podemos seguir tendências. Se na passarela tem a saia curta, a gente faz uma até o joelho, mas mantém a inspiração. Se não tem manga, coloca a manga para adequar ao nosso estilo”, afirma.
Um dos pilares do negócio é a inclusão. Para Quézia, além de abraçar diferentes crenças, isso também significa acolher mulheres com biotipos corporais diversos, com roupas que vão, no geral, do 36 ao 54, sem distinção de preços entre os tamanhos.
“Eu sempre convivi com mulheres gordas, via o sofrimento para se vestirem e sentia que as marcas tiravam o direito delas de escolherem o que usar. Na minha loja, elas não precisam entrar na roupa, pelo contrário, é a roupa que vai caber nelas, porque foi feita para o corpo delas”, explica a empreendedora.
A diversidade também está na equipe de vendedoras, que são treinadas para prestar um atendimento de escuta ativa e transformar a compra em uma experiência confortável.
O faturamento médio mensal da Querem Vestidos é de R$ 120 mil, com R$ 70 mil na loja física e R$ 50 mil no site. Quézia afirma que não usa nenhuma parte do lucro na sua vida pessoal: cada centavo é reinvestido na empresa, seja para quitar dívidas ou acelerar a expansão.
Os planos incluem a abertura de duas lojas pequenas e a venda somente de peças exclusivas, produzidas com a ajuda de pequenos empreendedores terceirizados. Ela chegou a cogitar abrir uma fábrica, mas os custos afastaram a ideia por completo.
“Se eu tivesse uma fabricação própria, teria que subir o preço das peças, o que não é a intenção, mas também não posso depender de fornecedores que só trabalham até o tamanho 44, porque fere a missão da loja. Essa parceria com pequenos produtores ajuda a solucionar os dois problemas”, conclui.
Avaliação dos consumidores
A Querem Vestidos recebeu uma nota de 4,9 - de 5 estrelas - no Google, com 27 avaliações até a publicação desta matéria. Os comentários destacam a qualidade das roupas e do atendimento.
Os autores das notas concedidas não podem ser verificados. Eventualmente, avaliações positivas ou negativas podem ser uma ação a favor ou contra a empresa.
A marca não tem registros no site Reclame Aqui.
Empreender em nicho de mercado ajuda a impulsionar negócio, avalia especialista
A gerente de mercado do Sebrae-RJ, Raquel Abrantes, afirma que um dos principais pontos positivos do empreendedorismo religioso é a possibilidade de atuar em um nicho de mercado.
Os negócios estão inseridos em um setor amplo, como o de vestuário, mas buscam atender as necessidades específicas de um grupo específico - no caso da Querem Vestidos, os evangélicos.
Raquel explica que os nichos de mercado são definidos, no geral, com base em características geográficas (localização), demográficas (individualidades dos clientes), psicográficas (estilo de vida) e comportamentais (hábitos de consumo).
“Reduzir o seu público-alvo a ponto de entender exatamente o que ele precisa faz com que a concorrência seja menor. Assim, o empreendedor pode trabalhar com preços mais competitivos e tem uma taxa de conversão mais alta”, diz.
Perfil do consumidor de moda mudou ao longo dos anos
Para satisfazer os consumidores de moda, já não basta ter uma peça bonita. Raquel afirma que, das roupas de festa aos trajes modestos, os clientes adquiriram o costume de pesquisar modelos, tecidos, caimentos e preços.
Além disso, há ainda a concorrência internacional, que cresceu com a chegada de varejistas asiáticas no Brasil.
A especialista diz que para contornar os desafios é fundamental, em primeiro lugar, fazer uma boa gestão, o que inclui desde o planejamento estratégico até o controle das finanças e ações de marketing.
“É importante entender onde os seus clientes estão e oferecer algo diferente. Posso fazer um café da tarde para mulheres ou um desfile com vestidos na igreja. O que vale é encontrar uma forma de fidelizar essas pessoas e mostrar empatia”, avalia.
Raquel aponta ainda que a saída para se destacar pode estar na parceria com outros empreendedores. O ideal é relacionar os produtos de um negócio com o outro: se a loja vende vestidos, pode fazer uma composição com bijuterias ou sapatos de algum parceiro, com descontos para quem adquirir o combo.
“Mas a vantagem tem que ser verdadeira, não adianta tentar enganar o cliente, tem que estar mais barato”, afirma.
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