Na sala do apartamento onde mora, no bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a empresária Riley Swan, 30 anos, gerencia os produtos que vende em sua sex shop online. O negócio, idealizado em meados de 2019, só tomaria forma cerca de um ano depois, em meio à pandemia de covid-19.
O tempo que separa o projeto de Swan e sua situação atual, porém, é marcado por dificuldades, que vão desde a necessidade de começar a empreender até o desconhecimento de técnicas de gestão. Isso a levou a quebrar em poucos meses.
Assim como ela, muitas pessoas trans acabam recorrendo ao empreendedorismo não somente pelo desejo de ter um negócio próprio e fazer dinheiro, mas por não terem espaço no mercado de trabalho.
Swan sabe bem das dificuldades que pessoas trans, como ela, enfrentam no mercado. Depois de perder a mãe ainda criança e do distanciamento do pai, Swan passou a morar com a madrinha. Começou a trabalhar cedo, desde os 15 anos, passando por um call center, estúdio de tatuagem e sorveteria. Foi no último emprego em que foi contratada, em um outro call center no Rio, que deu início a sua transição de gênero.
Depois de ser repreendida pelos chefes por usar roupas femininas e maquiagem, da mesma maneira que outras funcionárias usavam, foi demitida. “Eu tinha que me alimentar, pagar as minhas contas. Quando chegou a minha primeira conta, eu fiquei desesperada”, conta Swan, sobre o período em que teve que recorrer à prostituição para se sustentar.
Cerca de dois anos e meio depois, usou a experiência de profissional do sexo para idealizar a própria loja de utensílios sexuais. “Resolvi investir na sex shop para não ficar refém das ruas”, afirma.
Enquanto começou a operar o negócio, participou de diferentes cursos de capacitação de instituições como a Fundação Besouro e o Sebrae, que a permitiram ter o negócio estruturado e retomar as operações depois de quebrar pela primeira vez. Atualmente, ela aposta também na venda de biquínis autorais e pretende passar a oferecer outros itens de moda.
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Inserção de pessoas trans no mercado de trabalho é baixa
Apesar da falta de dados sobre a população trans, essa dificuldade de inserção no mercado de trabalho pode ser vista em números. Uma pesquisa de 2019, por exemplo, que ouviu mais de 600 pessoas trans no Estado de São Paulo, aponta que cerca de 54% tinham o próprio negócio, contra 27% que trabalhavam empregadas.
Dentre estas, somente 14% possuíam contratos CLT. O estudo, com dados de 2015, foi realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e da Secretaria Estadual de Saúde.
“Temos uma carência muito grande de dados sobre essa população, mas sabemos que a empregabilidade de pessoas trans e travestis ainda é muito baixa”, afirma Gabriel Romão, Co-Diretor Executivo da TODXS, ONG que fornece apoio para pessoas LGBTQI+ em diferentes âmbitos.
Ele menciona estimativas da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), que apontam que 90% da população trans e travesti feminina do Brasil tem a prostituição como fonte de renda.
“Essa mulher, que muitas vezes está em situação de prostituição, quando chega aos 30 anos não aguenta mais. É aí que você começa a pensar em formas de gerar renda que não seja por meio do sexo. O que tentamos fazer na TODXS é dar ferramentas para que esses negócios possam crescer, seja através de capital semente ou de apoio para formalização”, afirma Romão.
Empresária abriu café antiquário
Ana Paula Tavares, de 38 anos, é dona de um antiquário e café na Vila Mariana, em São Paulo. A ideia inicialmente era criar um espaço com exposição de peças antigas mais agradável para os clientes e, para isso, ela passou a servir bolo e café.
Com o tempo, a procura pelo café cresceu e levou à criação de um espaço que combina cafeteria, bar e antiquário. “Hoje percebo que meu crescimento está muito ligado a ter escutado os meus clientes”, diz Tavares.
Natural de Fortaleza (CE), ela se mudou para São Paulo para estar em um ambiente onde o mercado de arte era mais valorizado. Chegou a fazer um curso de massoterapia antes da mudança, mas não conseguiu trabalho.
“Meus planos mudaram. Quando eu cheguei aqui, vi que eu não tinha nem coragem de chegar na clínica para oferecer meu trabalho. Eu estava no começo do processo de transição. Quando eu andava na rua as pessoas já olhavam, já julgavam. Então, a oportunidade que estava na minha frente foi a de trabalhar na rua mesmo”, afirma Tavares.
“Acho importante a sociedade saber que recorremos a isso por não ter opção, por não ter oportunidades. Traz bastante chagas psicológicas, é muito dolorido ser excluído socialmente”, complementa.
Logo após esse período conseguiu um primeiro trabalho como modelo para ações de marketing em lojas de shopping, onde diz que também enfrentou preconceito. “Éramos pré-selecionadas pela foto e depois havia uma entrevista. E eu era descartada nesses momentos, quando alguém percebia que eu era uma mulher trans”, conta.
Depois de um certo tempo, ela foi trabalhar no mercado de arte e começou uma faculdade de design de interiores. Nesse período, passou a trabalhar com a restauração de obras, desde pequenos quadros até fachadas de prédios antigos, e teve mais contato com antiquários e brechós, o que a levou à ideia de abrir seu próprio espaço em 2019.
Dificuldades fazem pessoas trans se desvalorizarem
Gabriel Romão diz que o preconceito faz a própria pessoa trans se desvalorizar. “Se essa pessoa sempre se questiona, se invalida, isso prejudica até a forma como ela precifica, às vezes muito mais abaixo do que o valor de mercado. A (baixa) autoestima pode ser uma barreira para o sucesso”, completa.
Esse mesmo cenário é visto na procura por uma vaga de trabalho. “Se eu não tenho casa e não tive estrutura familiar, já começo a correr de um ponto de partida lá de trás. Se eu não tenho escolaridade, tudo se torna muito mais difícil, especialmente em um mercado de trabalho que tem milhões de pessoas desempregadas”, afirma Melissa Cassimiro, consultora de diversidade e inclusão na Consultoria Mais Diversidade.
Ela menciona, porém, que o mercado de trabalho não é uniforme, e existem iniciativas de empresas que buscam ter quadros mais diversos, inclusive com programas voltados especificamente para a contratação de pessoas trans.
“A gente não pode mais falar de pessoas trans como excepcionalidades. Não temos mais o cenário de estar surpresos com uma pessoa trans em determinada empresa, por exemplo. A gente não pode descartar essas conquistas, mas ainda tem muito para ser feito”, complementa.
Para Romão, certos medos e pré-julgamentos se tornam barreiras que impedem que mais empresas empreguem pessoas trans. “Muitas empresas pensam que não estão prontas para receber essas pessoas, antes mesmo de conversar com elas. Muitas vezes, a companhia se preocupa mais com a possibilidade de errar o pronome (do que com outros fatores mais importantes)”, afirma.
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