Após as gigantes de alimentos BRF e JBS anunciarem neste ano investimentos em carne cultivada, chegou a vez da Ambi Real Food se lançar no mercado como a primeira startup de carne de laboratório do Brasil. Fundada em Porto Alegre, em setembro, a empresa de seis funcionários já desenvolveu um protótipo de hambúrguer bovino.
Embora esse mercado seja ainda incipiente no País, estudo da consultoria norte-americana AT Kearney projeta que até 2040 esse tipo de carne produzida a partir de células, também conhecida como carne artificial, sintética ou limpa, deve ocupar 35% do mercado global de proteínas, uma fatia de US$ 630 bilhões num setor que soma US$ 1,8 trilhão.
Diferentemente da BRF e da JBS, que apostaram em startups estrangeiras (a israelense Aleph Farms e a espanhola BioTech Foods), a Ambi Real Food já nasce com tecnologia brasileira, a partir da experiência da Núcleo Vitro, empresa de biotecnologia fundada em 2019 que trabalha com mais de 90 empresas, em 10 países, desenvolvendo estudos científicos.
“O princípio é o mesmo, utilizar células isoladas de bovinos para ter um produto com os mesmos sabor, textura e nutrientes da carne convencional, porém sem o abate animal. Mas cada empresa acaba desenvolvendo as suas particularidades e questões de propriedade intelectual”, diz Bibiana Matte, de 29 anos, fundadora da Ambi Real Food e da Núcleo Vitro.
A produção da carne cultivada não leva antibióticos e começa com a obtenção de uma amostra de células de alta qualidade de animais, por exemplo por meio de uma biópsia. Depois, essas células são cultivadas em laboratório, em ambiente propício para o seu crescimento. Diferentemente dos transgênicos (geneticamente modificados), esse tipo de carne é feito a partir da reprodução de células.
Para o desenvolvimento da tecnologia no Brasil, a Ambi Real Food recebeu aporte inicial de R$ 200 mil, após vencer edital do programa Techfuturo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). A foodtech (startup de alimentos) também realiza investimentos próprios e participa de iniciativas como o HackBrazil, programa de aceleração junto ao Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT).
Investimentos crescem a cada ano
De acordo com o The Good Food Institute (GFI), em 2020 os investimentos globais em carne cultivada bateram recorde, totalizando US$ 360 milhões, o que é seis vezes o levantado em 2019 e 72% do valor arrecadado na história da tecnologia (2016-2020).
Ainda segundo o GFI, já existem ao menos 70 startups no setor em cerca de 10 países, focadas em insumos, serviços ou produtos finais. No Brasil, há outras empresas que já trabalham para desenvolver a tecnologia, mas, por questões estratégicas, ainda não anunciaram publicamente, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.
Não por acaso, companhias brasileiras hoje têm investido em startups no exterior, caso do Enfini Ventures, fundo de capital de risco voltado ao mercado de proteínas alternativas, que tem no portfólio empreendimentos de carne cultivada, entre eles as americanas Upside Foods, BlueNalu e Mission Barns. Neste ano, a Enfini também participou da rodada de negócios da startup israelense Aleph Farms.
“Entendemos que para fazer tudo isso acontecer é necessário bastante gente envolvida”, ressalta Matte. Segundo a pesquisadora, o foco da Ambi Real Food, agora, está no escalonamento da produção da carne cultivada. “Depois, seguiremos para o desenvolvimento de cortes estruturados, como um pedaço de filé. Estamos em um momento de conversas e análises para definir parceiros e expansão”, complementa.
Mesmo com o protótipo de hambúrguer bovino pronto, a foodtech ainda não tem estimativa de quando o produto chegará ao mercado. Por se tratar de tecnologia nova, esbarra em custos e na falta de marcos regulatórios no Brasil, de órgãos como Anvisa e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Para se ter uma ideia, a primeira aprovação de venda comercial de carne cultivada ocorreu em 2020, em Singapura, na Ásia.
A BRF, que aportou US$ 2,5 milhões na Aleph Farms, espera lançar sua carne cultivada no Brasil a partir de 2024, contudo, também enfrenta os mesmos entraves legislativos, segundo informou Marcel Sacco, vice-presidente de Novos Negócios da companhia, em entrevista ao Estadão.
“Há ainda desafios técnicos para o desenvolvimento da tecnologia e o próprio entendimento da população que irá consumir o produto final”, salienta Matte, que decidiu empreender na área por uma preocupação com a sustentabilidade. “A população mundial está crescendo. Precisamos pensar em outras maneiras de produzir alimentos. Uma delas é utilizando a expertise do cultivo de células e da engenharia de tecidos.”
Gustavo Guadagnini, presidente do GFI Brasil, salienta que é preciso formar um ecossistema de apoio para que novas iniciativas possam prosperar. “O Brasil é líder mundial na produção de carne. Em carne cultivada, porém, nosso País ainda está atrás e tem poucas iniciativas acontecendo. Nesse sentido, a Ambi é importante, por ser uma startup totalmente brasileira desenvolvendo essas tecnologias.”
Benefícios ambientais da carne cultivada
Além de não requerer o uso de antibióticos e abate animal, a carne cultivada prevê menos uso da terra, de 63% a 95%, em comparação com a carne convencional, não só para a criação do gado, como também para a produção de ração. As informações constam de estudo deste ano encomendado pelo GFI e pela organização Gaia, com base em dados fornecidos por 15 empresas do setor.
Ainda de acordo com a pesquisa, a nova forma de produzir a proteína poderia reduzir de 51% a 78% o consumo de água azul, encontrada em reservatórios superficiais e subterrâneos. Os impactos do aquecimento global também diminuiriam em 17%, 52% e 92% em comparação à produção tradicional de frango, porco e boi, respectivamente.
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